Acervo CONCERTO: A vida de Francisco Mignone    

por Redação CONCERTO 02/09/2019

Texto de Camila Fresca na Revista CONCERTO de março de 2016

“Francisco Mignone pertenceu à raça de artistas cuja existência foi como a de certos seres alados que a natureza engendrou para viver adejando em torno da luz. E a luz, para ele, era a música. A vida não tinha outra significação.” É assim que o musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo inicia um texto no qual rememora a carreira de Francisco Mignone. Talento nato, desses que jorra com facilidade espontânea, ele muitas vezes precisou domar seu impulso natural de músico popular para construir uma carreia “séria”. Já dentro da música erudita, viveu o dilema de deixar falar suas raízes italianas ou ajudar a construir uma música “brasileira”.

Mignone nasceu em São Paulo, no dia 3 de setembro de 1897. Um ano antes, seu pai, o flautista Alferio Mignone, havia imigrado da Itália para tentar a vida no Brasil. Ainda criança, Mignone começou a estudar flauta com o pai e piano com Silvio Motto. Aos 13 anos, já se apresentava como flautista e pianista em pequenas orquestras e, em 1913, iniciou os estudos no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, como colega de Mário de Andrade. Nessa época, participava de serenatas e compunha peças populares, que mais tarde publicaria sob o pseudônimo de Chico Bororó. Era conhecido nas rodas de choro do Brás, do Bixiga e da Barra Funda. 

Em 1917, formou-se em piano, flauta e composição, e seu talento logo lhe impulsionou a carreira. No ano seguinte, estreou como solista no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, interpretando o primeiro movimento do Concerto para piano, de Grieg – Mignone era excelente pianista –, numa apresentação que ainda teria trechos de algumas de suas obras, como o poema sinfônico Caramuru e a Suíte campestre. Em 1920, Mignone obteve uma bolsa e partiu para uma longa estadia na Europa, indo estudar na terra de seu pai com Vincenzo Ferroni. Sob orientação deste, Mignone escreveu em 1921 a primeira de suas óperas, O contratador de diamantes. Em 1922, a Congada, trecho da ópera que se tornaria célebre, foi apresentada em São Paulo e, no ano seguinte, no Rio de Janeiro, durante turnê da Orquestra Filarmônica de Viena, regida por Richard Strauss. A ópera completa estreou no Theatro Municipal carioca em 20 de setembro de 1924. 

Como poderia se esperar, suas composições dessa fase são marcadas pela influência italiana. Em 1927 e 1928, ele viveu na Espanha, onde escreveu diversas canções, a Suíte asturiana e concluiu uma segunda ópera, L’innocente – a estreia desta, no Rio de Janeiro, em 1928, foi um tremendo sucesso e fez com que a crítica o apontasse como o sucessor de Carlos Gomes. Ainda na Europa, surgiriam algumas composições inspiradas em temas brasileiros, como a peça sinfônica Maxixe. De volta ao Brasil em 1929, ele passou a lecionar no Conservatório Dramático e Musical e retomou a amizade com Mário de Andrade, também professor da instituição. Mário havia acabado de lançar Macunaíma e o Ensaio sobre a música brasileira; seu trabalho em prol da criação de uma música nacional estava no auge. Sob essa forte influência, Francisco Mignone escreveu a Primeira fantasia brasileira, ainda em 1929, bem como algumas de suas principais obras: Festa das igrejas, Maracatu do Chico Rei e Sinfonia do trabalho

Em 1934, Mignone passou a residir no Rio de Janeiro e seguiu trabalhando intensamente. À carreira de pianista e compositor, nessa época já se somava também a de regente. Em 1937, na Alemanha, regeu a Orquestra Filarmônica de Berlim em obras de sua autoria e dos brasileiros Henrique Oswald, Villa-Lobos, Francisco Braga e Lorenzo Fernandes. No ano seguinte, regeu concertos em Hamburgo, Berlim e Roma.

Por ocasião da estreia de L’innocente, em 1928, Mário de Andrade escreveu um artigo de jornal no qual notava: “Tenho que reconhecer que a situação atual de Francisco Mignone é bem dolorosa e que estamos em risco de perder, perdendo-o, um valor brasileiro útil. Músico de sentido essencialmente dramático, dotado de uma cultura exclusivamente europeia, desenvolvido no ritmo da sensibilidade italianizada, Francisco Mignone se vê constrangido a compor o quê? O inocente. Mas que valor nacional tem O inocente? Absolutamente nenhum. Em música italiana, Francisco Mignone será mais um, numa escola brilhante, rica, numerosa, que ele não aumenta. Aqui ele será de um valor imprescindível”. 

Em mais de uma ocasião, Mário escreveria sobre Mignone, para ele um músico que poderia ter um importante papel em seu projeto musical. Em outro texto, de 1939, por exemplo, Mário comentaria os “perigos” que rondaram Mignone em sua fase de formação: “Percorre ambiciosamente todas as Europas musicais, adquire técnica, mas divaga tanto em sua funcionalidade que quase se naturaliza franco-espanhol com a Suíte asturiana. Mas tudo tem valor de relação nos artistas verdadeiros; e as suas tentativas italianizantes de ópera, a sua atração permanente por Debussy e Ravel, a sua noite nos jardins de Espanha traziam o paulista de novo para o Brasil com uma forte riqueza de experiência e a saciedade europeia”.

Na verdade, o artigo trata de uma fase complicada na vida do compositor, de crise composicional, e o texto de Mário é, ao mesmo tempo, uma injeção de ânimo e um conselho, ou ao menos uma sugestão sobre o caminho que ele deveria seguir: “Esta situação atual de Francisco Mignone eu não denunciaria se o artista não tivesse aquela importância dos grandes [...] e se principalmente não apresentasse imensas possibilidades futuras. Pelo já realizado, sem a menor fraqueza da camaradagem, considero este brasileiro uma das expressões mais representativas da música americana”.

Esse era Mário de Andrade em pleno trabalho de cooptação dos compositores contemporâneos para seu projeto de criação de uma música nacional. Ainda que em geral Mignone se mostrasse favorável ao esforço do amigo, alguns depoimentos, feitos após a morte de Mário, relativizaram essa total adesão ao projeto nacionalista. Em 1968, o compositor afirmou: “Amparado pela cordial e espontânea amizade de Mário de Andrade, embrenhei-me no cipoal da música nacionalista e, também, pra não ser considerado [...] uma ‘reverendíssima besta’ [...] compus, compelido, Quatro fantasias brasileiras, para piano e orquestra, Maracatu do Chico Rei, Festa das igrejas e Sinfonia do trabalho [...]. Depois de dobrar o cabo das boas resoluções, aos 60 e mais anos, entreguei-me a escrever música pela música. Agrado a mim mesmo e é quanto basta. Aceito e emprego todos os processos de composição conhecidos. Transformo-os à minha maneira”.

De fato, Mignone partiria para novas experiências já na maturidade. A partir da década de 1960, portanto com mais de 60 anos, o artista passou a compor peças atonais e, com exceção de suas músicas sacras e suas obras para violão, manteve-se fiel ao novo estilo até a década de 1970, quando retomou a composição tonal e compôs outras duas óperas: O chalaça (1976) e O sargento de milícias (1978). Escreveria ainda os bailados Quincas berro d’água (1979) e O caçador de esmeraldas (1980).

Mignone foi essencialmente um compositor sinfônico, deixando suas composições mais substanciais e representativas para orquestra – Sinfonia do trabalho, O espantalho, Festa das igrejas e Quadros amazônicos são alguns desses títulos. No entanto, sua produção camerística é bastante rica e conta com sonatas para violino, violoncelo, quartetos de cordas, sextetos e diversas peças para conjunto de sopros. Sua produção pianística é particularmente importante, com obras como Lendas sertanejas, Seis estudos transcendentais e as Doze valsas de esquina. Também sua coleção de canções é uma das principais do repertório brasileiro. Isso sem se esquecer de suas peças sacras, as já mencionadas óperas, as obras para violão... Francisco Mignone faleceu aos 88 anos de idade, no dia 2 de fevereiro de 1986, consagrado como um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Conhecer e difundir esse extenso legado é o melhor que se pode fazer em prol da memória do compositor.

Francisco Mignone [Reprodução]
Francisco Mignone [Reprodução]

Linha do tempo

1897
Nasce em São Paulo, no dia 3 de setembro

1913
Inicia os estudos no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, formando-se em piano, flauta e composição. Já se apresentava como flautista e pianista em pequenas orquestras

1917
Passa a publicar peças populares sob o pseudônimo de Chico Bororó. Era conhecido nas rodas de choro do Brás, Bexiga e Barra Funda

1918
Estreia como solista no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, interpretando o primeiro movimento do Concerto para piano, de Grieg

1920
Com uma bolsa, vai estudar na Itália, onde escreve, no ano seguinte, O contratador de diamantes, sua primeira ópera

1922
A “Congada” da ópera O contratador de diamantes é apresentada em São Paulo. No ano seguinte, é tocada no Rio pela Filarmônica de Viena regida por Richard Strauss. 

1929
Volta ao Brasil, indo lecionar no Conservatório Dramático. A amizade e influência de Mário de Andrade rende algumas de suas principais obras: Festa das igrejas, Maracatu do Chico Rei e Sinfonia do trabalho.  

1934
Passa a residir no Rio de Janeiro

1937
Na Alemanha, rege a Filarmônica de Berlim em obras de sua autoria e de outros compositores brasileiros.

1951
Assume a diretoria do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

1959
Fim de sua fase mais estritamente nacionalista. Passa a compor peças atonais. 

1970
Nesta década, acaba retomando a composição tonal

1986
Morre no Rio de Janeiro em 19 de fevereiro

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