Da diplomacia à música, os cem anos de Vasco Mariz

por Redação CONCERTO 21/01/2021

Aconteceu em 1952. Em pouco menos de vinte dias, o cantor lírico realizou uma turnê de oito concertos pelos Estados Unidos. E não gostou nada da experiência. Repetir os mesmos gestos, as mesmas obras, pegar o trem e correr para outra cidade, lutar com o acompanhador, preocupar-se em não pegar um resfriado. Nada feito. Não queria mesmo essa vida de andarilho. Até chegou a cantar uma vez mais na Ópera de Nápoles, em uma produção de La Gioconda. Mas o embaixador brasileiro o repreendeu: se fosse vaiado, era o próprio Brasil a ser vaiado. Melhor evitar estar no palco.

Quem contou a história, em uma entrevista a Ricardo Tacuchian publicada na Revista Brasileira de Música em 2011, foi o próprio cantor: Vasco Mariz. Mas ele ainda assim realizaria importante trabalho para a música brasileira, como diplomata, pesquisador e autor, em uma trajetória relembrada no momento em que se completa o seu centenário – ele nasceu no dia 22 de janeiro de 1921 e morreu em 16 de junho de 2017.

Vasco Mariz formou-se em ciências jurídicas e sociais pela antiga Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. E logo enveredou pela carreira diplomática. Entre 1948 e 1951, foi vice-cônsul no Porto, em Portugal, e terceiro secretário na embaixada em Belgrado. Em seguida, atuou como vice-cônsul em Rosário, na Argentina, onde também foi cônsul, assim como em Nápoles, na Itália.

Trabalhou ainda em Washington, nos Estados Unidos, antes de voltar ao Brasil, em 1962, onde ocupou diferentes postos no Itamaraty, como chefe da Divisão de Política Comercial e da Divisão de Difusão Cultural. Mais tarde, seria embaixador no Chipre, em Israel, no Peru e na Alemanha Oriental, até aposentar-se da carreira diplomática em 1991.

Mas, como fica claro em seu depoimento a Tacuchian, a paixão de Mariz pela música nunca o abandonou. Seu interesse pela arte era antigo – e misturou-se muitas vezes com o trabalho como diplomata. Formado pelo Conservatório Brasileiro de Música, foi secretário da Comissão Nacional de Música da Unesco, presidente do Conselho Interamericano de Música da OEA; integrou o Conselho Federal de Cultura do MinC e foi presidente da Academia Brasileira de Música. 

Em 1947, publicou em Portugal o livro Figuras da música brasileira e, no Brasil, o Dicionário biográfico musical. Foi o autor da primeira biografia de Heitor Villa-Lobos, Heitor Villa-Lobos, compositor brasileiro, escrita a partir de entrevistas realizadas entre 1947 e 1949. O livro é um documento precioso a respeito do modo como o próprio compositor entendia e defendia sua trajetória.

Outras obras incluem seu estudo A canção brasileira de câmara, esboços biográficos de compositores como Alberto Ginastera e Claudio Santoro, História da música no Brasil, A música no Rio de Janeiro no tempo de D. João VI e Três musicólogos brasileiros: ensaios sobre Mário de Andrade, Renato Almeida e Luiz Heitor. São obras que, espalhadas por sua vida, ganharam dezenas de edições.

“Mariz tornou-se um verdadeiro embaixador da música brasileira, conciliando suas obrigações institucionais com o apoio e incentivo aos criadores nacionais, promovendo a execução de obras, a organização de eventos e a publicação de livros”, escreveu André Cardoso em artigo sobre o autor no site Tutti Clássicos em janeiro de 2017. “Seu trabalho como musicólogo seguiu a trilha aberta por nomes como Renato Almeida e Luiz Heitor Correa de Azevedo. Suas obras foram constantemente reeditadas, sempre ampliadas e atualizadas. Em 1981, surgiu seu livro mais importante, História da Música no Brasil. É, sem dúvida, uma obra referencial, na qual desenvolveu uma visão de conjunto de nossas atividades musicais, desde o período colonial, sempre se valendo das muitas relações pessoais que estabeleceu com diferentes gerações de compositores brasileiros”, completa.

Para Tacuchian, em depoimento na Revista Brasileira de Música, “se Vasco Mariz não se enquadra entre os modernos musicólogos brasileiros que labutam na universidade e que são possuidores de rigorosas ferramentas de pesquisa e dedicados a objetos de estudo bem mais delimitados, ele, por sua vez, vem dando uma contribuição incomparável à divulgação da música do Brasil, para um público mais abrangente”. “Mariz nos dá os argumentos para desmentir a equivocada afirmativa de que a música clássica não faz parte de nosso patrimônio espiritual ou de nosso cotidiano. O cantor que perdemos para a diplomacia foi substituído pelo diplomata que ganhamos para divulgar o nosso canto.”

Mariz foi fruto de sua época. E, com o tempo, sua obra tem passado por reavaliações à luz de novas pesquisas, descobertas documentais e olhares para a música clássica nacional. Ela segue no entanto como exemplo da tentativa de olhar em conjunto a produção musical brasileira, deixando o registro de diferentes momentos históricos – assim como sua ação pessoal o colocou em contato com diferentes artistas que ajudaram a definir os rumos de nosso meio musical. 

[O Instituto Piano Brasileiro tem em seu canal o LP gravado por Vasco Mariz em 1956, um recital de canções brasileiras de câmara, acompanhado ao piano por quatro compositores brasileiros. Clique aqui para ouvir.]

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O diplomata e pesquisador Vasco Mariz [Divulgação]
O diplomata e pesquisador Vasco Mariz [Divulgação]

 

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