Obras fundamentais, grandes intérpretes

por Camila Fresca 02/10/2020

Dentro do universo erudito, a palavra choro costuma remeter ao célebre ciclo de Villa-Lobos, com obras que aliam ousadia estética a elementos da música popular urbana carioca. Outros compositores, no entanto, utilizaram o termo em suas obras e um deles foi Camargo Guarnieri (1907-1993). 

O Selo Naxos acaba de lançar, dentro da série A Música do Brasil, o primeiro volume dedicado aos Choros de Camargo Guarnieri, em gravação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. O grupo é regido por Isaac Karabtchevsky e os solistas são músicos da própria orquestra. 

Mozart Camargo Guarnieri, compositor paulista de Tietê, filho de um imigrante italiano, escreveu os primeiros choros no início da década de 1930. Eram obras de atmosfera popular, para grupos reduzidos e que podem de fato ter sido influenciadas por Villa-Lobos. Bem diferente dessas peças, no entanto, são os choros que o compositor compõe a partir de 1951, em plena maturidade. 

“A palavra choro não foi usada na acepção popular, isto é, um conjunto de instrumentos de sopro, cordas e percussão que, altas horas da noite, percorre as ruas da cidade numa espécie de serenata”, esclareceu Guarnieri. “Choro está substituindo ‘concerto’. O compositor preferiu ‘choro’ porque a mensagem, ou melhor, a linguagem musical é nacional, própria do autor e com raízes na terra.”

 

Foi com o Choro para violino e orquestra que Camargo Guarnieri iniciou a série. A obra foi escrita no ano seguinte a sua polêmica “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil”, de 1950, na qual afirmava seu nacionalismo e conclamava a comunidade musical a segui-lo. O fato pode explicar a adoção do termo choro para algumas obras orquestrais que passaria a escrever a partir de então. 

O Choro para violino tem três movimentos, sendo os dois primeiros lentos e “suaves”, o que faz com que as dissonâncias não soem tão ásperas, mas sim intensifiquem a expressividade da obra. No terceiro movimento, Allegro ritmado, fica patente a presença da música nordestina, que tanto agradava o compositor. A nostalgia e certa tristeza enunciadas pelo violino são valorizadas pela interpretação de Davi Graton. 

Recebendo sua primeira gravação mundial, o Choro para flauta e orquestra de câmara data de 1972. Conforme nota o professor Paulo de Tarso Salles no livreto que acompanha o disco, esta obra “flerta livremente com alguns procedimentos caros ao dodecafonismo, porém tratados com liberdade e a serviço da linguagem pessoal do compositor”. Como em geral acontece com toda a obra de Camargo Guarnieri, o fato de filiar-se à corrente nacionalista está longe de indicar uma escrita previsível. Com três movimentos interligados, a peça demanda grande destreza do solista, aqui a flautista Claudia Nascimento.  

Também para solista e orquestra de câmara é o Choro para fagote, de 1991, última obra que o compositor completou. De novo, atesta-se a riqueza e inventividade de sua linguagem musical. Se a primeira parte é um tanto “chorosa”, o Allegro final é enérgico, guiado por uma virtuosística melodia do fagote, tocado por Alexandre Silvério. 

O disco inclui a Seresta para piano e orquestra, de 1965. Ainda que o título também remeta a uma manifestação musical popular, passado algum tempo após a celeuma da Carta aberta e a necessidade de reafirmar suas ideias, é provável que Guarnieri tenha se sentido mais livre. Caldeira Filho, crítico que assistiu à primeira audição, foi perspicaz: “A Seresta [...] tem sido noticiada como marcadora de nova fase do compositor, caracterizada pela libertação quanto ao nacionalismo e tonalismo harmônico. Num artista desse valor não é possível nenhuma libertação referente a este ou aquele elemento: a libertação é total ou não existe. E foi o que pudemos verificar com esta reserva: o encaminhamento de Camargo Guarnieri para novos rumos não se deu subitamente com esta composição; antes, vem sendo gradualmente processado de algum tempo para cá”. A obra possui instrumentação inusual (piano solo, harpa, xilofone, tímpano e cordas) e, segundo o compositor, o termo seresta se relaciona com o nostálgico segundo movimento, intitulado “Sorumbático”. Os difíceis solos de piano ficam à cargo de Olga Kopylova. 

Além de trazer à vida obras orquestrais fundamentais de nosso repertório em interpretações e gravações de alto nível, este primeiro volume dedicado a Camargo Guarnieri tem o mérito de mostrar ao público a qualidade dos instrumentistas que integram a Osesp. Todos os solistas do disco são músicos aptos a enfrentar com mestria qualquer tipo de repertório. 

 

A série A Música do Brasil é parte do projeto Brasil em Concerto, desenvolvido pelo Ministério das Relações Exteriores para promover a gravação e difusão da música brasileira. É provavelmente o melhor acontecimento da seara cultural no tenebroso ano de 2020. Cerca de cem obras orquestrais dos séculos XIX e XX estão sendo registradas pela Osesp e filarmônicas de Minas Gerais e Goiás. Além da gravação, o projeto prevê novas ou primeiras edições das peças, um elemento tão importante quanto os próprios registos, pois permitirá que outras orquestras tenham acesso ao material. 

O CD com os Choros de Camargo Guarnieri está disponível na Loja CLÁSSICOS; clique aqui.

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Camargo Guarnieri [Reprodução]
Camargo Guarnieri [Reprodução]

 

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