Anotações sobre presente e futuro

por João Luiz Sampaio 20/01/2021

Esse texto foi originalmente apresentado durante o debate Música clássica e o mundo em transformação, realizado no dia 18 de janeiro durante a programação da Oficina de Música de Curitiba [veja abaixo o vídeo completo da mesa, que teve a mediação de Nelson Rubens Kunze e participação de André Cardoso, Eliane Parreiras e Flavia Furtado].

A pandemia do coronavírus teve enorme impacto na atividade musical brasileira. E continuará a ter. Entramos em 2021 ainda lidando com a realidade de 2020. E as expectativas otimistas de que até o meio do ano já tenhamos a maior parte da população vacinada são apenas isso: otimistas e, por enquanto, pouco prováveis. Por conta disso, é difícil olhar já com distanciamento esse momento. Ainda assim, é possível identificar instantes diferentes no que diz respeito à atuação das orquestras e teatros de ópera ao longo do ano que passou, o que nos dá talvez alguns subsídios para a discussão que estamos tendo aqui hoje na Oficina de Música de Curitiba sobre o futuro da música clássica.

No universo da música, o primeiro semestre de 2020 foi marcado pela impossibilidade de estar no palco, um momento em que a internet se tornou o único caminho possível para que as orquestras se mantivessem de alguma forma atuantes. No segundo semestre, aos poucos o retorno aos palcos – sem público e, mais tarde, com plateias reduzidas – começou a acontecer em diversas cidades do país. Orquestras e salas de concertos mostraram capacidade de adaptação, criaram protocolos de segurança sanitária e retomaram da maneira que puderam suas temporadas regulares.

Em meio a esses dois momentos, surgiu uma discussão absurda a opor internet e concertos presenciais. Era como se as apresentações no palco precisassem ser defendidas perante a ameaça do mundo virtual. Uma bobagem sem tamanho. Afinal, ninguém, por um segundo que seja, acredita que a internet possa substituir o concerto ou a récita de ópera realizados ao vivo. É claro que não. Agora, esse tipo de discussão acaba deixando de lado a discussão realmente importante: como, a partir da experiência do que houve na pandemia, a internet pode ser considerada uma ferramenta fundamental no trabalho das instituições musicais e na busca por maior inserção e relevância social, na criação de um universo artístico mais inclusivo e diversos. Essa discussão sim me parece mais importante – e mais difícil de se fazer. Porque nela não adiante fingir uma normalidade ainda não conquistada. Nela, é necessário lidar ainda com muitas perguntas e reconhecer que a busca de respostas exige ousadia e coragem.

Ao longo de 2020, nenhuma orquestra brasileira, ou quase nenhuma, sentou-se em silêncio à espera do fim da pandemia. Em todas as regiões do país, projetos virtuais foram criados e levados adiante, de acordo com a possibilidade de cada grupo. Houve quem utilizasse a internet como ferramenta para a criação de novos repertórios, quem investisse em conteúdo pedagógico; músicos foram mobilizados a dar aulas para jovens estudantes; conteúdos inéditos foram criados; programações foram montadas para discutir, por meio da arte, os dilemas do momento atual; campanhas de arrecadação para ajudar na luta contra o coronavírus foram desenvolvidas; além, claro, da simples transmissão de concertos, que de simples não tem nada – ao menos quando feita de maneira séria e consistente, entendendo o concerto em vídeo como um produto que merece a mesma atenção e busca de qualidade que a apresentação ao vivo.

E o público com certeza reagiu a todo esse esforço. Não estávamos mais falando de centenas ou milhares de pessoas, mas de milhões. Na Sala Minas Gerais, seriam necessários cerca de 2.500 concertos lotados para que se atingisse o número de pessoas atingidas por ações na internet. Na Sala São Paulo, seriam necessários cerca de três mil concertos. Em média, cada recital da série da integral das sonatas para piano de Beethoven teve público duas vezes e meia maior do que a lotação da Sala Cecília Meireles. São três exemplos rápidos, que com certeza se espalham pela programação de outras orquestras e teatros brasileiros de diferentes tamanhos e propostas artísticas.

 

Esses números devem ser vistos com cuidado, é claro. Afinal, o engajamento de uma pessoa que assiste por alguns minutos um concerto na internet não é o mesmo daquele que sai de casa para ir a um concerto e lá ficar durante duas horas. Mas ainda assim é um público em potencial que não pode ser ignorado. Ainda mais quando à quantidade se soma uma análise qualitativa demonstrada por algumas pesquisa realizadas.

Um levantamento feito pela Royal Philharmonic Orchestra da Inglaterra traz números interessantes. O grupo descobriu, por exemplo, que 51% da população adulta do universo pesquisado havia assistido a um concerto na internet durante a pandemia: entre essas pessoas, porém, apenas 21% já tinha ido presencialmente a uma sala de concertos. Há aí, de cara, um público potencial a ser atraído. Mas as descobertas continuam. O levantamento foi feito em parceria com serviços de streaming de música. E mostrou que 31% dos que buscaram música clássica tem menos de 35 anos – um número que cresceu 17% ao longo da pandemia. Mais do que isso. Essas pessoas afirmaram estar dispostas a ajudar as instituições musicais a lidar com a perda de receita durante a pandemia. Ou seja, jovens não apenas estão interessados nas orquestras, mas também dispostos a ajudá-las a sobreviver [a questão da sobrevivência das orquestras, na Inglaterra, onde não há grupos públicos e os músicos não recebem quando tocam é central]. 

Outra pesquisa importante foi realizada pela LaPlaca Cohen nos Estados Unidos, um levantamento com 122 mil pessoas, não apenas com relação à música clássica, mas também a outras áreas artísticas. Segundo a pesquisa, 36% do público que consumiu concertos e óperas durante o período de isolamento social nos EUA nunca esteve presencialmente em uma sala de concertos ou teatro de ópera. De novo, há aqui um público potencial nada desprezível. Mas o modo como essas pessoas acompanharam a música clássica na pandemia é ainda mais fascinante: o interesse por aulas e palestras foi tão grande quanto o interesse por exibições de apresentações antigas ou por transmissões de concertos ao vivo. Outro número: 81% das pessoas ouvidas afirmaram ter buscado alguma atividade criativa durante a pandemia (pintar, escrever, etc) e, desse total, 37% optaram pela música. Para finalizar, foi feita uma outra pergunta: o que uma instituição cultural pode fazer para se tornar melhor e mais relevante no futuro. As principais respostas: estar aberta a todo tipo de público (24%), tratar seus funcionários de maneira justa (20%), atrair mais jovens (19%), prestar mais atenção às comunidades em que se inserem (18%), contemplar vozes mais diversas (18%), trabalhar juntamente a outras instituições (15%).

O que concluir desses números? A primeira e mais simples conclusão é a de que há um público potencial a ser conquistado. Mas não se trata apenas de converter pessoas para a música clássica. O que me chama atenção em particular é o fato de pessoas que já consomem a música clássica não terem hábito de ir a concertos. Por que isso acontece? Em que medida as instituições dedicadas à música clássica não são representativas do público da música clássica? 

É algo a se pensar e não há uma única resposta. Mas a pesquisa oferece algumas pistas. Entre os jovens, por exemplo, a pesquisa da Royal Philharmonic mostrou que o interesse pela música clássica convive com o interesse por outros gêneros musicais – a música pop, o rock, o funk e assim por diante. A orquestra e a música sinfônica são apenas um dos gêneros que esse público consome durante o ano em sua busca por cultura. Da mesma forma, é um público que escolhe o que vai consumir em termos de atividades culturais de maneira mais imediata, no momento. Será que não há, então, no modo de vender uma programação, uma forma de contemplar essas pessoas, para quem uma assinatura anual parece um compromisso que nada tem a ver com sua forma de viver e de consumir cultura? Será que não há como pensar em ciclos, em pequenos festivais, em programações interdisciplinares, em parceria com outras instituições, para falar e criar uma relação com essas pessoas? Outra pista vem das respostas à pesquisa feita pela LaPlaca. O que as respostas nos dizem é que persiste a ideia de instituições orquestrais como fechadas a um público restrito, que ignoram os jovens, as comunidades em que estão inseridas e no qual não há diversidade racial, de gênero e social tanto em suas direções como no público. 

Sabemos aqui no Brasil, onde a criação de projetos sociais ligados à música clássica é um dos pilares das últimas décadas de nosso meio musical, que não há barreiras para a música clássica no que diz respeito à busca por novos públicos. Ao mesmo tempo, como várias discussões realizadas ao longo de 2020 mostraram, ainda há preconceito racial e de gênero nas instituições. Em entrevista ao portal TAB UOL, jovens músicos contaram da experiência de preconceito que já sofreram em teatros brasileiros. Um deles disse que, mesmo quando não vai tocar, leva seu instrumento, pois assim é visto como estudante de música e sua presença ali é aceita – quando está à paisana, sua presença costuma ser questionada por seguranças e mesmo por membros do público, que chamam os indicadores de lugar para que verifiquem se aquelas pessoas deveriam mesmo estar sentadas ali. Não há boa vontade ou discurso bonito sobre igualdade que sobreviva enquanto situações assim continuarem a acontecer e as instituições artísticas não assumirem papel protagonista na luta por maior igualdade e inclusão. 

Estamos aqui para falar do futuro da música clássica. E fazemos isso porque acreditamos que ela terá um futuro. O que essas pesquisas mostram é que público existe. Mas esse público, em especial o público mais jovem, nasceu em um mundo diferente. Um mundo que já não aceita a normalização de velhas práticas e velhos preconceitos. E que por isso mesmo exige das instituições uma postura diferente. Uma postura ativa. Uma postura conectada com o mundo à sua volta – um mundo que, no Brasil, é ainda pautado pela desigualdade e pela necessidade de investimento na educação. Não se pode esperar que uma orquestra resolva esses problemas. Mas é de se imaginar que ela se envolva com eles, que entenda que lidar com essas questões como pode ser sim parte de sua missão. 

Na última sexta-feira, as duas principais orquestras de São Paulo realizaram concertos em suas salas – o Theatro Municipal de São Paulo e a Sala São Paulo – com a presença do público e a transmissão pela internet, atingindo milhares de pessoas Brasil afora. Na última sexta-feira, o Brasil vivia um pesadelo inimaginável: pessoas morriam por falta de oxigênio. Pessoas morriam asfixiadas, enquanto diminuía-se continuamente a gravidade da pandemia. Não houve em nenhum dos concertos uma só palavra sobre o que acontecia. Nem um mero cuidado de dedicar as apresentações às vítimas da doença, nem uma mera preocupação de usar o espaço do concerto para chamar atenção para o que estava acontecendo.

Conversei com alguns músicos dos dois grupos a respeito. E o que ouvi deles foi que não é função de uma orquestra tratar desses temas. A função de uma orquestra é tocar música. E tocar bem. Não há dúvida. Quando falamos na reinvenção na música clássica, porém, não estamos falando de abandonar o repertório ou de tocá-lo de qualquer jeito. Mas da certeza de que fazer isso ganha ainda mais sentido quando mostramos como a arte tem o poder de transformar vidas individuais e também uma sociedade. E isso só se faz quando estamos dispostos a olhar essa sociedade e a ouvir o que essa sociedade tem a nos dizer. 

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Estúdio do Digital Concert Hall da Filarmônica de Berlim [Divulgação]
Estúdio do Digital Concert Hall da Filarmônica de Berlim [Divulgação]

 

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Comentários

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Excelente texto!!! Lamentável a posição dos músicos conforme relatado no final. É por essa falta de empatia que a música clássica é tão distante de grande parte da sociedade. Esses não capturaram o espírito transformador e alentador das artes.

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