Bela Maré

por Nelson Rubens Kunze 14/08/2018

Trezentos alunos em oficinas gratuitas de dança, ações de difusão e de formação de plateia, um projeto de formação artística profissional (com aulas diárias de dança contemporânea e de balé clássico), workshops com artistas nacionais e estrangeiros e intercâmbios com escolas da França e da Suíça: acredite ou não, esta é a realidade de uma escola de dança localizada dentro de uma favela do Rio de Janeiro, a Escola Livre de Dança da Maré. A escola é um dos projetos da Redes da Maré, uma instituição da sociedade civil que promove o desenvolvimento sustentável de um dos maiores conjuntos de favelas no Rio de Janeiro, o complexo da Maré. 

Com uma população de 140 mil pessoas, a Maré normalmente frequenta o noticiário em razão das disputas entre facções criminosas, da truculência da polícia ou de outras situações de conflagração social, que, não raro, acabam em tragédias e mortes. Mas essa visão acaba escondendo outra realidade, que é a da vida da imensa maioria das pessoas que ali residem, em suas batalhas cotidianas – individuais e coletivas – em busca de paz, realização e dignidade. 

Foi essa outra realidade, a da “potência da periferia” simbolizada também pela Escola Livre de Dança da Maré, que o Fórum Brasileiro pelos Direitos Culturais (FBDC) conheceu em seu encontro da semana passada, no Rio de Janeiro. O programa iniciou-se na quarta-feira, dia 8 de agosto, no Galpão Bela Maré, com o seminário “O valor da cultura: territórios inventivos”. 

O Galpão Bela Maré é um espaço para criação e difusão das artes localizado na favela Nova Holanda, entre a passarela 9 e 10 da Avenida Brasil. Desde 2011, o Bela Maré – um projeto do Observatório de Favelas – promove exposições, seminários, atividades formativas, festas e articulação entre produtores, e tem como desafio “o desenvolvimento de um espaço destinado não apenas à fruição das artes, mas, sobretudo, ao entendimento das expressões artísticas como potência para reinvenções do fazer e pensar dos sujeitos (e, portanto, da cidade), na perspectiva do território em que está localizado”.

A frase acima, impressa no folheto de apresentação, pode passar a falsa impressão de uma iniciativa fria de caráter sociológico. Nada mais distante disso. Os projetos culturais apresentados, não apenas da Maré, mas de outras favelas cariocas e mesmo em outros estados do país, demonstram uma emocionante vitalidade de grande repercussão social. Na falta do estado, vemos a comunidade se organizando e buscando soluções para os seus problemas. 

Jailson de Souza e Silva, no Galão Bela Maré [divulgação / FBDC]
Jailson de Souza e Silva, no Galpão Bela Maré [divulgação / FBDC]

Um dos líderes culturais da comunidade da Maré é o geógrafo Jailson de Souza e Silva, formado pela UFRJ e PUC-RJ e com pós-doutorado pela New York University, nos Estados Unidos, ele próprio criado e crescido na periferia do Rio de Janeiro. Jailson, que também participa do Fórum Brasileiro pelos Direitos Culturais, é diretor do Observatório de Favelas e do Instituto Maria e João Aleixo, que naquele dia, após o seminário, ainda promoveu a entrega do prêmio “Mestre das Periferias” a quatro personalidades: o ativista indígena Ailton Krenak, o líder quilombola Antonio Nêgo Bispo, a escritora Conceição Evaristo e a socióloga e vereadora do Rio de Janeiro, egressa da Maré, Marielle Franco (in memoriam), recentemente assassinada no centro do Rio de Janeiro. 

Como defende Jailson, a compreensão da “potência da perifeira” inverte a lógica preconcebida que enxerga os territórios populares “a partir das noções de carência, ausência e precariedade, expressões da exclusão, da violência e da criminalidade”, para “afirmar suas potências inventivas, sua sociabilidade, suas formas inovadoras de garantir o direito à cidade e, não menos importante, suas plurais formas de beleza”.

Na área da música, são inúmeros os projetos que comprovam o enorme potencial e poder de transformação que a atividade cultural proporciona. No mundo, há projetos famosos, como o El Sistema venezuelano ou as iniciativas de Daniel Barenboim em Israel e na Palestina. E no Brasil, é só lembrar do Neojiba na Bahia ou do Instituto Baccarelli na comunidade de Heliópolis, em São Paulo, entre muitos outros igualmente valiosos.

Ainda sob o impacto das realidades e conquistas da periferia tão exemplarmente apresentadas na Maré, o Fórum Brasileiro pelos Direitos Culturais reuniu-se, no dia seguinte, no MAR – Museu de Arte do Rio, para a sua plenária, debatendo questões como a defesa e aprimoramento da Lei Rouanet; os 3% das Loterias Federais para a cultura; e o problema da taxação abusiva dos aeroportos para armazenamento de obras de arte e instrumentos musicais, entre outros.

Em um país que ainda enfrenta graves distorções sociais – e em tempos de radicalismos políticos e intolerâncias de toda ordem –, os projetos da Maré e as articulações do Fórum Brasileiro pelos Direitos Culturais são um alento. Eles dão mostras de como é possível transformar a realidade por meio da educação e da cultura, e de como é possível criar, pelas artes, vetores positivos para a construção de uma sociedade mais justa e solidária. 

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