Década musical

por Jorge Coli 01/01/2020

Um olhar sobre as transformações do meio da música brasileira

Terminamos uma década, e o balanço musical aqui no Brasil, entre trancos e barrancos, com todos os ventos e os furacões contrários, mostra um saldo muito positivo.

Penso que isso advém da expansão e da qualidade cada vez mais alta do ensino musical. Foi ele quem impôs uma audiência ampliada.

Uma vez, há alguns anos, ouvi um professor de música interrogar: “Estamos formando uma quantidade enorme de instrumentistas, de músicos de todos os tipos, gente que não acaba mais. Como o mercado vai absorver tudo isso?”.

O mercado… Ah, o mercado! Dito assim, parece um monstro mecânico, um leviatã-máquina, com leis fixas e estritas, automáticas. Está claro, o “mercado” musical que existia há dez anos não podia absorver a quantidade de músicos ativos que temos hoje.

Mas a formação de jovens músicos, em grande parte graças à afirmação de projetos sociais efetivos e eficazes, com o evidente corolário da ascenção social, permitiu a “oferta” de artistas (para não empregar “mão de obra”) de alta qualidade. Resultado: as oportunidades de trabalho aumentaram, como aumentou o número de orquestras sinfônicas por todo o país, algumas delas atingindo nível de fato elevado, assim como de corais, grupos de câmera. Solistas vivem dignamente de suas artes; são muitas as iniciativas – festivais, programas anuais de música de câmera e montagens de óperas fora dos grandes teatros oficiais do Rio de Janeiro e São Paulo (teatros esses que vêm passando por uma incúria desoladora dos poderes públicos, apesar dos esforços, muitas vezes, de seus administradores) têm-se multiplicado.

Sala São Paulo [Divulgação]
Sala São Paulo [Divulgação]

Tal situação traz uma consequência clara: a ampliação do público. Pessoas que nunca viram uma ópera, que nunca assistiram a um concerto sinfônico, descobriram a beleza da música ao vivo, da presença sonora que vibra. Lotaram teatros e salas. As convencionais “apresentações para grande público”, ao ar livre, em arenas inapropriadas, continuam e atraem multidões que vão lá encontrar um momento de beleza e poesia. Porém, além dessas formas massificadas, que podem, sem dúvida, despertar interesses e amores novos pela música, o público está descobrindo a qualidade das interpretações em lugares adequados, com finura, nuance e profundidade.

Desse modo, o aumento do número de executantes com bela qualidade ampliou a presença da música e aumentou o número de frequentadores. Ou pode-se pôr esses fatores em outra ordem, caso se queira, não é por isso que se deve discutir.

Outra consequência é a seguinte: nesse processo simbiótico, a qualidade dos ouvintes melhora. A música dita clássica traz com ela um peso social grande. Música “das elites”, música difícil, música de esnobes.

Essas qualificações possuem a verdade dos preconceitos. As “elites” podem ter, e têm, com frequência, o esnobismo dos intérpretes célebres. Um artista célebre, internacional, lota as salas mesmo com entradas a preço alto. Muitos daqueles que vão ouvir um nome talvez não tenham de fato grande familiaridade com a música. 

Ora, os intérpretes locais, menos célebres, oferecendo suas artes, fazem com que, pouco a pouco, os esnobes – ou ingênuos (uma vez alguém me disse que “a música clássica é como o tênis: só suporto ouvir ou assistir pelos grandes campeões”) – descubram que música é muito mais que o recital apresentado por uma estrela do Scala ou do Carnegie Hall. E que um concerto de artistas não tão conhecidos, ou mesmo de principiantes, de alunos, pode trazer mais verdade, mais fervor, mais vibração e prazer que a grande orquestra em turnê que vai tocar pela nonagésima vez uma sinfonia de Beethoven ou de Brahms. Com a música clássica ocorre um fenômeno curioso: às vezes “pega”, às vezes não, como motor de carro usado. Isso não depende da qualidade excelsa do executante, que pode pôr tudo no lugar, bonitinho, bem colocado, nuançado, e o tempo não passa, e a gente gostaria de estar longe dali, fazendo outra coisa.

Outras vezes, o concerto modesto, apesar das imperfeições, incendeia-se por uma inteligência e um fervor contaminantes. É a prática da audição ao vivo que nos faz participar de tais prazeres intensos.

Acresce-se o gosto que vem de seguir um artista local, uma orquestra que progride, um solista que se afirma, mais e mais.

Portanto, em tempos de calamidades, sejamos otimistas. Esperemos que, na próxima década, a quantidade e a qualidade média dos intérpretes, assim como do público, continuem a subir. Para a cultura musical, isso é mais importante que os picos.