Por Guilhermina Lopes*
Geraldo Carneiro é daquelas personalidades criadoras, tão raras hoje em dia, que têm a coragem de ser “trezentos, trezentos e cinquenta”, como dizia Mário de Andrade. Poeta, dramaturgo, letrista, libretista, tradutor, professor, compositor, provavelmente mais algumas tantas coisas que agora fogem à mente...
E bom contador de causos, fazendo jus à sua origem mineira, de que pouca gente se lembra, tão ambientado e há tantos anos no Rio. Na tarde de sábado (dia 9 de setembro), o jornalista João Luiz Sampaio teve o prazer desse dedo de prosa tão poético.
Um doce exílio
Sobre o seu contato inicial com a música e a poesia, Carneiro contou que na infância lia os poetas “como se fosse um estrangeiro”, num misto de reverência e iconoclastia, relação que ainda persiste em sua memória afetiva, nas releituras (sensação de “adolescência permanente”) e sobretudo em sua grande liberdade de trabalho. “Eu nunca respeitei os orixás da poesia”, disse.
Aprendeu piano e violão na juventude, mas seus amigos mais talentosos na música desde cedo lhe pediam letras, e acabou sendo “docemente exilado”. Essas parcerias, a seu ver, eram proveitosas para os dois lados, deixando à mostra apenas o melhor de cada um. “As letras dele eram ainda piores que as minhas músicas” – foi assim que descreveu a longa e frutífera parceria com Egberto Gismonti.
Sua condição de “exilado”, no entanto, não o impede de fazer sugestões musicais. Ao enviar a Francis Hime a letra do que viria a ser a canção Pau Brasil, pediu que a música fosse o mais simples possível. E foi. No amalgamar das parcerias artísticas, um passa a ser a voz do outro. Muitas vezes o que se conhece previamente do compositor acaba influenciando as suas letras, como conta sobre Auto-retrato, parceria com Gismonti, que traz elementos da biografia do compositor: “Um dia no Japão/ Vi o sol na asa do avião”.
Apesar de baseado na troca e no diálogo, o trabalho colaborativo não precisa, a seu ver, de interação o tempo todo. Cita o exemplo bem-sucedido da parceria com Wagner Tiso na opereta Manu Çaruê, derivada de Mandu Çarará, de Villa-Lobos, onde a maior parte do trabalho foi de cada um em seu canto.
“Pororoca simbólica”
Assim Carneiro descreveu o efeito desejado de outra de suas atividades: a tradução. O encontro das duas línguas precisa despertar algo de novo, mas o sentido precisa desaguar o mais inteiro possível no idioma de destino. É, em suas palavras, “um mundo vasto, uma experiência que dá fôlego”, especialmente se tratando de Shakespeare, de quem traduziu os 12 sonetos e várias peças, algumas com o máximo rigor, como A tempestade, outras onde podia se permitir algumas brincadeiras, como é o caso de As you like it, em que pôde incluir alusões a poemas e canções brasileiras famosas. Em se tratando de dramaturgia, considera o autor norte-americano Ezra Pound (1885-1972) “o único professor que se iguala” ao Bardo.
Na boca do cão
Carneiro também transita pelo teatro musical e pela ópera, sendo a peça Doce deleite, com música de John Neschling e protagonizada por Marília Pera e Marco Nanini, o mais célebre e longevo trabalho nessa área. Outro sucesso foi Lola Moreno, parceria com Neschling e Bráulio Pedroso. Sua primeira tentativa em dramaturgia musical foi o projeto de uma obra sobre Eva Perón, em parceria com Astor Piazzola, mas que acabou não se concretizando.
Recentemente tem trabalhado em óperas de câmara, empreitada proposta pela soprano Gabriela Geluda. A primeira, Na boca do cão, estreada em 2017, é baseada em um episódio da infância de Geluda, em que teve a cabeça abocanhada por um pastor alemão. Carneiro considera poeticamente potente o fato de a menina, que felizmente escapou fisicamente ilesa, ter se tornado uma cantora lírica. Destaca que o compositor Sérgio Roberto de Oliveira soube assimilar muito bem as sugestões de seu texto, que entregou já pronto, especialmente no uso de um acorde perfeito maior na frase “eu não sou cachorro não”, em meio a um todo musical mais dissonante. A segunda ópera foi Migrações, com música de Beto Villares, e a terceira, em elaboração, está ainda sem título.
A televisão também é outro de seus campos de trabalho, atuando há décadas como roteirista na Rede Globo. Na entrevista, citou seu trabalho na minissérie Lúcia McCartney, baseada no conto de Rubem Fonseca (também adaptado por ele para cinema e teatro).
Minas mítica
A conversa do último sábado fez parte da programação do Ateliê de Criação em Dramaturgia Musical da Academia de Ópera do Palácio das Artes, promovida pela Fundação Clóvis Salgado, de Belo Horizonte, e com a curadoria de Lívia Sabag e Gabriel Rhein-Schirato. Carneiro é professor na oficina de criação de libretos, atividade central do Ateliê. Perguntado sobre essa experiência, destacou a maturidade e o clima de cumplicidade e simpatia entre os participantes, envolvidos, em parceria com cinco compositores convidados, no desenvolvimento de minióperas sobre o romance O grande mentecapto, de Fernando Sabino, estória em alguma medida despretensiosa, mas que traz, a seu ver, “uma espécie de resumo mítico de Minas Gerais”. A diversidade de abordagens é, em suas palavras, o grande trunfo deste trabalho em desenvolvimento.
“Não há como cercear os caminhos da linguagem”
E como vê a relação entre gêneros artísticos alguém que transita por tantos? Dedicar-se a outras linguagens abre sempre novas possibilidades; no jogo entre o canônico e o não canônico, não se deve tomar a tradição de cada gênero como detentora da verdade absoluta sobre sua forma. A arte, entendida como transformação e ampliação da realidade, deve refletir o tempo, mas não de forma panfletária. “O presente é tão transitório que é melhor dialogar com o futuro ou o passado. Em arte, me interessa sobretudo aquilo que ainda não é.”
* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio
![O poeta Geraldo Carneiro durante entrevista on-line realizada no Ateliê de Criação do Palácio das Artes [Reprodução]](/sites/default/files/inline-images/geraldo.jpg)
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