Nos últimos dias um inusitado acontecimento do mundo das artes, por assim dizer, chamou a atenção no noticiário de diferentes países. À parte a guerra na Síria, a crise do Euro ou, por aqui, o julgamento do Mensalão, a aposentada espanhola Cecilia Giménez (81) atraiu os olhos do mundo para si. Melhor, para o seu mais recente trabalho, uma malfadada restauração de um afresco do Santuario de la Misericordia, um Ecce homo estampado numa parede da pequena igreja do século XVI localizada no distrito de Borja, em Zaragoza. A pintura, no entanto, é mais recente, provavelmente de Elías García Martínez, um pintor naturalista de nenhuma expressão em meio à fervilhante cena artística do século XIX.
A pintura estava danificada pelo salitre presente na composição da parede. Foi aí que, com a maior das boas vontades, Cecilia Giménez resolveu empreender um processo independente de restauração, sem o devido aval ou orientação de qualquer instituição. A vovozinha acreditou que suas diletantes habilidades como pintora amadora seriam suficientes para ressuscitar a famosa imagem de Cristo apresentado por Pilatos à turba ensandecida e sedenta por sangue. Acabou mandando-o para sepultura, sem direito a ressurreição no terceiro dia, como pode ser conferido na imagem abaixo no mais hilariante “antes e depois” de toda história da arte.
Afresco do Santuario de la Misericordia, antes e depois do "restauro" [imagens: divulgação]
Assim que o caso veio à tona ele ganhou repercussão mundial, e imediatamente se inseriu na cultura internética, servindo de mote para as mais diferentes paródias. O irônico da situação é que não apenas o Cristo de Borja ficou famoso somente a partir de sua aniquilação, mas também o fato de sua metamorfose ser mais admirada que a versão original. Já é possível até comprar camisetas do Cristo transformado em macaco.
Mas, sejamos justos, Cecilia Giménez não está sozinha, e na história não faltam exemplos de pessoas tão bem intencionadas quanto desqualificadas, que põe a perder a beleza original de uma obra de arte. A música clássica também tem seus “Cristos de Borja”, isto é, versões musicais que, em tese, são frutos da maior boa vontade, o que não impede um resultado calamitoso.
Nosso mais famoso Cristo de Borja é, sem dúvidas, o Adagio de Albinoni. Um dos grandes hits da música clássica, ele ficou especialmente conhecido a partir da década de 1980, depois que o über-maestro Herbert von Karajan, à frente de um paquidérmico conjunto de cordas da Filarmônica de Berlim, lançou pela Deutsche Grammophon um álbum dedicado a obras famosas da música barroca, que incluiu também peças de Pachelbel, Vivaldi e Corelli. O álbum por si é um Cristo de Borja, tanto que ocupa lugar de destaque na lista das “20 gravações que nunca deveriam ter sido feitas”, compilada pelo crítico inglês Norman Lebrecht.
O retrato original de Tomaso Albinoni, compositor que, coitadinho, nos acostumamos a ouvir em sua “versão Borja” [imagens: divulgação]
Mas não quero, por ora, falar de interpretações musicais equivocadas, pois o Adagio de Albinoni é Cristo de Borja de alto nível, difícil de ser superado. Isto porque a partitura que corre solta desta música jamais foi composta por Tomaso Albinoni (1671-1751), músico de destaque da cena barroca veneziana, autor de óperas e muita música instrumental.
Ela na verdade é um “arranjo” realizado pelo musicólogo italiano Remo Giazotto, que também é o autor de uma biografia de Albinoni. Diz a história que, logo após a II Guerra Mundial, Giazotto travou contato com fragmentos manuscritos de um de um Trio Sonata supostamente composto por Albinoni na fabulosa coleção de partituras da Biblioteca Estatal da Saxônia, em Dresden (edifício que miraculosamente escapara do colossal bombardeio da Força Aérea Britânica, em março de 1945).
Aqui, permito-me pensar que, movido pelo sentimento de reconstrução que emanava da Europa em ruínas, Giazotto, na melhor das boas intenções (será?), decidiu restaurar os preciosos fragmentos da partitura. Mas a questão não se limitou a restaurar fisicamente o papel no qual estavam rabiscadas as poucas colcheias e os sustenidos de Albinoni, mas sim restaurar a música em si.
Mas como restaurar trechos da imaterialidade sonora de uma música a partir do frágil material que Giazotto tinha em mãos? Bem, nossa Cecilia Giménez avant la lettre simplesmente começou a criar uma nova partitura, mas ao invés de se limitar aos detalhes técnicos e estilísticos da música barroca italiana, ele utilizou elementos da linguagem musical pós-romântica. O resultado não poderia ser mais dantesco, o que não impediu de ser amplamente apreciado e, pior, do pastiche se tornar a obra-símbolo do compositor para o grande público.
Afinal, se quando pensamos em Bolero vem logo à mente o nome de Ravel, em Nona Sinfonia o de Beethoven e em Serenata noturna o de Mozart, difícil não associar a palavra Adagio ao nome de Albinoni. Hoje em dia pouco se ouve e conhece da obra “de verdade” deste talentoso compositor vêneto.
A inerente imaterialidade da música faz dela uma das artes mais sujeitas a ação de incautas Cecilia Giménez e seus “Cristos de Borja”. Seja na interpretação a partir de uma partitura, ou a partir da tradição oral (o famoso “tocar de ouvido”, muito comum na música popular), ao passar pelo filtro do intérprete, ainda que genuinamente bem intencionado, é muito fácil a ideia musical se distanciar da purificação e ficar turva como a água de um rio lamacento, ou tal como na versão final do Ecce homo de García Martínez. Afinal, de boas intenções, o inferno está cheio.
[Clique aqui e ouça a versão “Cristo de Borja” do Adagio de Albinoni na interpretação de Herbert von Karajan e Filarmônica de Berlim.]
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