‘Aleijadinho’, uma ópera e os limites entre passado e presente

por João Luiz Sampaio 09/05/2022

OURO PRETO – Na calçada em frente à casa de Tomás Antônio Gonzaga, o compositor Ernani Aguiar cita outro poeta mineiro. “Não entrarei, senhor, no templo, seu frontispício me basta.” Drummond falava da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. Aguiar também, mas do outro lado da rua, em frente à igreja, um palco havia sido montado. Grandes véus cobriam parte da fachada. E uma pequena multidão descia pela rua Cláudio Manoel a fim de conseguir um lugar no Largo da Coimbra.

Naquele palco, logo estrearia uma ópera sobre a vida de um personagem antigo da cidade, o escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Música de Aguiar, texto de André Cardoso. Produção da Fundação Clovis Salgado que, após a estreia na noite de fria de Ouro Preto no dia 29 de abril, estreia esta semana no Palácio das Artes de Belo Horizonte, mais uma vez sob o comando do maestro Silvio Viegas, à frente da Sinfônica e do Coro Lírico de Minas Gerais, e da diretora cênica Julianna Santos.

Em uma entrevista à Revista CONCERTO, Santos comentou sobre o desafio de montar a ópera a céu aberto em Ouro Preto. Mas falava não das dificuldades técnicas – que, aliás, na movimentação cênica e na amplificação de orquestra e cantores foi impecável. Na chegada à cidade, ainda no início dos preparos do espetáculo, algo diferente passou por sua mente. Seria ela, como diretora, a contar a história de Aleijadinho em Ouro Preto ou a cidade, com sua história marcada nas ruas e fachadas, a nos contar sobre o passado?

Estrear em Ouro Preto com certeza coloca a nossa relação com o passado como protagonista da ópera. Ainda mais pela forma como texto e música são articulados. Ernani Aguiar cria temas envolventes, explora coloridos que vão do lirismo a passagens grandiosas. E, no meio do caminho, evoca os lundus, as modinhas ou mesmo a música sacra do compositor Emerico Lobo de Mesquita, que se misturam ao DNA da partitura, tanto do ponto de vista narrativo como também musical.

O mesmo caminho percorre o texto de André Cardoso. Uma preocupação evidente é explicitar o contexto histórico. Um bom exemplo é o primeiro ato, em que Aleijadinho é quase coadjuvante em uma narrativa dedicada aos personagens da Inconfidência Mineira, como Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Suas árias trazem textos escritos pelos dois, em busca declarada por fidelidade histórica. E eles tramam, falam de uma cidade um dia rica e agora em decadência, de uma sociedade em transformação, do desejo de partir. E da busca por liberdade.

O ato se encerra justamente com uma grandiosa ode, em que a bandeira do estado de Minas e sua mensagem – Libertas Quae Sera Tamen, Liberdade ainda que tardia – é levantada pelo coro, enquanto todos cantam em favor de um novo Brasil. Ao que o público reagiu de maneira também veemente, trazendo para hoje seu ideal de liberdade e reconstrução com gritos entusiasmados de “Fora Bolsonaro” (justiça seja feita, houve ainda assim dois gritos isolados, mas severos, pedindo Lula na cadeia).

Uma escultura sem face

Em um dos jardins escondidos e escuros da casa de Tomás Antonio Gonzaga, há uma pequena escultura em homenagem a Marília de Dirceu, provavelmente sua principal personagem, cantada no século XVIII em toda sua beleza em um poema lírico no qual os dois jovens pastores exaltam a natureza, mas precisam encarar também o fim de um amor interrompido pelo exílio, sobrando apenas, como escreveria mais tarde Cecília Meireles em seu Romanceiro da Inconfidência, “esses restos de uma história/ de sonho, amor, prisões, sequestros, / degredos, morte, acabamento”.

A escultura não tem rosto. E a escolha do artista é naturalmente sugestiva. Qual face pode ter uma mulher que, em suas palavras, “é puro mistério nos ventos da história”? O rosto em branco inclui todos os rostos que Marília um dia já teve. E, na parte de trás do busto, uma pequena face escondida, quase apagada por um longo véu, parece nos dizer que existe em algum lugar uma Marília real, da qual nos distanciamos a cada interpretação que damos a ela e com a qual vamos, aos poucos, perdendo contato. 

O artista se contradiz. Que figura real se pode de fato encontrar lá no fundo do tempo? O personagem principal da escultura talvez não seja nem o rosto em branco nem a pequena face escondida, mas o véu que paira entre eles. Ao mesmo tempo em que esconde, ele nos revela algo. E não seria essa uma metáfora para a arte? Pois, se ela nos revela o mundo, o faz por meio de escolhas, e não pela tentativa de abarcá-lo inteiramente. 

Em Aleijadinho, a busca por um retrato fiel cria uma obra fluente, quase didática, fácil de acompanhar - como a presença do público, que não arredou pé durante as mais de duas horas de espetáculo, deixou claro. Mas também o faz em sacrifício de um olhar em direção ao mundo interior do artista, onde a pesquisa histórica é capaz de nos levar apenas até certo ponto. 

A ópera demarca bem alguns conflitos. E se constrói a partir da ideia do abandono, da história de um homem que, em direção à morte, é deixado sozinho pelos amigos, pelo filho. Mas, mesmo quando o contexto histórico é colocado em segundo plano, como acontece no segundo e no terceiro atos, a relação que se constrói com o personagem Aleijadinho é de distância. A música solene que acompanha a encomenda dos profetas para Congonhas do Campo é quase a de um chamado espiritual. E a música grandiosa que acompanha seu pedido a Deus para que possa conhecer seus netos recusa o intimismo e dá ao desejo interior do personagem um caráter quase mítico.

Mas há de qualquer forma, nas frestas entre texto e música, espaço suficiente para que os intérpretes criem caracterizações memoráveis. Não é exagero dizer que seu Aleijadinho significa um novo momento de maturidade na carreira do barítono Johnny França. Ou que a Joana de Luanda Siqueira revela uma artista refinada e de profunda sensibilidade, em especial nas cenas como o Manuel Francisco de Mar Oliveira, capaz de revelar na busca por uma vida melhor também o trauma na relação paterna que o move. Guilherme Moreira e Pedro Vianna souberam criar bem o caráter heroico de Gonzaga e Peixoto; assim como Licio Bruno e Mauro Chantal emprestaram solenidade e autoridade à interpretação de Lobo de Mesquita e Vicente Ferreira. Todos eles conduzidos com mão segura pelo maestro Silvio Viegas e acompanhados de uma Sinfônica de Minas Gerais que se saiu com enorme desenvoltura, repleta de matizes perante os desafios de uma partitura feita de muitos ambientes musicais – e também dos desafios de se tocar em uma ópera ao ar livre.

E há a direção de Julianna Santos. Ela escolhe utilizar projeções de pedaços de obras e esculturas do artista ao lado de elementos realistas, como o andaime em que Aleijadinho realiza seus trabalhos. Com isso, mistura de cara aquilo que se pretende real e aquilo que é recriação, fragmento. Está aí a grande sensibilidade de sua encenação. Ao mesmo tempo em que narra a história de maneira fluente, respeitando o ritmo teatral ditado tanto por música como por texto, Julianna Santos trabalha pequenos momentos nos quais a narrativa se potencializa. A escolha de encerrar a ópera com a mulher negra que acolhe o artista após sua morte, por exemplo, dá um rosto diferente ao Deus do qual se fala durante toda a ópera. E, nesse emocionante gesto de acolhimento, abandona por um instante o passado para colocar a história de Aleijadinho no colo do presente.

A ópera 'Aleijadinho' será apresentada no Palácio das Artes de Belo Horizonte a partir do dia 14 de maio; clique aqui e veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

[João Luiz Sampaio viajou a Ouro Preto e assistiu à ópera Aleijadinho a convite do Palácio das Artes da Fundação Clóvis Salgado.]

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Cena da apresentação de 'Aleijadinho' em Ouro Preto [Revista CONCERTO]
Cena da apresentação de 'Aleijadinho' em Ouro Preto [Revista CONCERTO]

 

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