“Mamãe, o que quer dizer moderno?”

por Nelson Rubens Kunze 02/10/2023

De hoje para amanhã, ópera dodecafônica de Schönberg, ganha excelente realização dirigida por Marcos Arakaki e Alvise Camozzi na Cúpula do Theatro Municipal de São Paulo

Um sofá, uma mesa de centro, uma poltrona, uma cadeira, duas portas e três telas de vídeo: este foi o enxuto cenário da ópera De hoje para amanhã, de Arnold Schönberg (1874-1951), apresentada nos últimos dias na cúpula do Theatro Municipal de São Paulo, na âmbito da série Ópera fora da caixa. A cúpula do teatro, que tem um acesso apenas por escadas a partir do último andar do prédio, é um amplo espaço circular, com teto em abóboda, usado normalmente para ensaios. De um lado ficou a orquestra – uma formação que inclui saxofones, contrafagote, harpa e bandolim; de outro, as cadeiras para 100 espectadores montadas sobre estrados; e, em frente no meio, o palco delimitado por uma estrutura metálica da qual pendiam os refletores. 

Original, simples e criativa, a encenação de De hoje para amanhã foi dirigida por Alvise Camozzi, que no programa afirma que a ópera propicia “uma reflexão sobre a arte e sobre o amor, em tempos de guerra e crises. Sua leveza temática esconde a fragilidade do ser, sempre ameaçado por novos obscurantismos”.

Schönberg compôs De hoje para amanhã em 1929, portanto depois do monodrama Erwartung (1909) e alguns meses antes de sua ópera mais conhecida, Moses und Aaron (1930). O libreto foi escrito por sua mulher, Getrud Schönberg, sob o pseudônimo de Max Blonda. Schönberg já vinha com planos de compor algo sobre a relação de um casal em um matrimônio e parte de suas anotações foi incorporada no De hoje para amanhã. O compositor queria uma ópera leve e com humor no espírito de outros títulos da Zeitoper (ópera do tempo) – como A ópera dos três vinténs, de Kurt Weill, ou Jonny spielt auf, de Ernst Krenek –, e imaginou que o título seria um grande sucesso. 

De hoje para amanhã é tida como a primeira ópera dodecafônica da história da música. A linguagem de doze tons (como se sabe, Schönberg é um dos pais da música moderna, criador do método que aboliu as tensões harmônicas do sistema tonal tradicional), que muitas vezes soa árida e artificial na música instrumental, ganha, na música lírica, uma enorme potência de expressão dramática. Aqui, também, é incrível a força que a partitura imprime à cena. Tanto que, uma das críticas à obra na época de sua estreia, foi o suposto desequilíbrio entre a seriedade e potência da música em relação à atmosfera coloquial e quase burlesca do libreto.

A história fala de um casal que leva um matrimônio burguês, comum. Porém, a partir de um encontro com uma amiga ex-colega da esposa e com um cantor – o marido se encanta com a sensualidade da amiga e a esposa flerta com o cantor que a deseja –, o casal começa a contrapor o tédio do casamento a uma vida livre e de prazeres dos “tempos modernos”. No irônico fim, contudo, marido e esposa concluem que o “moderno” é efêmero e muda “de hoje para amanhã” e que o que interessa mesmo é o amor. Na última frase da ópera, a criança, filho do casal, pergunta: “mamãe, o que quer dizer moderno?”. Em uma tirada sagaz, na produção do Theatro Municipal, a frase é dita por um senhor de cabelos brancos (a ator Rubens Velloso), que se levanta da plateia e caminha lentamente ao centro do palco... 

A ação se desenrola toda neste ambiente de sala que serve de cenário. O vídeo central acompanha toda a ópera e apresenta um filme fragmentado com imagens de objetos do cenário, da criança e do corredor do interior da residência que dá na porta que se abre para o palco. É a representação um pouco angustiante de ideais burgueses desequilibrados. Nos vídeos laterais, as legendas. 

Soou bem, coesa e brilhante, a Orquestra Experimental de Repertório, conduzida com atenção pelo maestro Marcos Arakaki, que logrou dar unidade à escrita dodecafônica. E foi excelente o desempenho dos solistas, em primeiro lugar o da soprano Laiana Oliveira, que fez a esposa. Dona do papel, Laiana aliou a sua interpretação vocal a uma competente atuação cênica, com um ótimo resultado. Foi bem também o marido, o barítono Isaque Oliveira, ainda que sem a mesma desenvoltura de palco da esposa – talvez sua postura mais contida tenha sido uma decisão cênica. O tenor Jabez Lima, que fez o cantor, e a soprano Manuela Freua, como a amiga, completaram com talento e convicção – não vamos nos esquecer de que estamos falando de linhas vocais atonais! – um quarteto vocalmente muito homogêneo.

Com uma lotação restrita a 100 pessoas, De hoje para amanhã foi um sucesso e lotou todas as seis récitas programadas. Quem a assistiu, descobriu um Schönberg surpreendente e vivenciou a força da ópera como expressão artística. 

A lamentar apenas uma questão: para garantir um bom lugar, o espectador tinha de enfrentar 50 minutos de um ambiente de balada com música eletrônica produzida pelo DJ Fractal Mood. Gente, uma coisa evidentemente não tem absolutamente nada a ver com a outra...

Isaque Oliveira, Manuela Freua, Laiana Oliveira e Jabez Lima em ‘De hoje para amanhã’ (divulgação, Natalia Cesar)
Isaque Oliveira, Manuela Freua, Laiana Oliveira e Jabez Lima em ‘De hoje para amanhã’ (divulgação, Natalia Cesar)

 

Cena de ‘De hoje para amanhã’, produção do Theatro Municipal de São Paulo (divulgação, Natalia Cesar)
Cena de ‘De hoje para amanhã’, produção do Theatro Municipal de São Paulo (divulgação, Natalia Cesar)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.