Música contemporânea para todos

por João Marcos Coelho 23/10/2023

O horário das 11 horas na Sala São Paulo é reservado, aos domingos, para concertos de maior apelo popular, por orquestras convidadas, muitas delas regionais, como a de Guarulhos e Santo André (duas excelentes sinfônicas, por sinal), com uma hora de duração sem intervalo. Os ingressos são gratuitos e podem ser obtidos pela internet. Todas estas facilidades acabam atraindo públicos em geral não habituados com o engessado ritual da música de concerto. Aplaude-se após cada movimento. O silêncio tão cultuado pelos melômanos é perturbado.

Tudo isso faz com que, como ocorreu no último domingo, dia 23, um concerto de música contemporânea acabe acontecendo com casa praticamente cheia. É uma raríssima oportunidade para mostrar a(s) música(s) do nosso tempo para públicos maiores.

A inteligência da concepção do programa do Percorso Ensemble, liderado por Ricardo Bologna, não é só para se elogiar. É para ser imitada – coisa difícil, porque em geral os xiitas militantes da música nova não admitem nenhum tipo de concessão, enquanto, do outro lado, os músicos mais pacatos torcem os narizes quando são escalados para tocar músicas mais ariscas, que os tirem da zona de conforto.

Equilibrando-se numa linha fina admirável, o concerto começou com músicos espalhados pela plateia soprando a famosa gaitinha do amolador de faca, figura até bem pouco tempo tradicional dos bairros desta grande metrópole. Todo mundo reconheceu, e sentiu-se partícipe da música. Ótima sacada do compositor, o violinista Luiz Amato, aliás no palco empunhando seu instrumento. Música de qualidade e ao mesmo tempo acessível a qualquer ouvido.

Na sequência, Bologna contou como nasceu Gnarly Buttons, um concerto para clarinete e ensemble de 1996 do compositor norte-americano John Adams. A obra é tributo ao seu pai clarinetista, acometido por Alzheimer. Estabeleceu-se novo contato com a plateia, numa era em que tantas famílias convivem com esta trágica doença que nos deixa dilacerados a ver como o ente querido nos deixa e abandona mentalmente enquanto fisicamente permanece rijo e forte (aconteceu isso com minha mãe, por isso me comove este tipo de contato). De repente, sentimo-nos abraçados – título do terceiro movimento, “Put your loving arms around me” – por uma música intensa, muito bem construída. Adams, hoje com 76 anos, é da segunda geração dos minimalistas norte-americanos. Mas ele descolou-se dos papas Philip Glass e Steve Reich. Seguiu um caminho próprio que o tornou mundialmente conhecido no domínio da ópera e por seus candentes temas atualíssimos, como Nixon in China, A Morte de Klinghofer, Doutor Atômico. Peça encorpada, 30 minutos, que manteve a atenção da grande plateia.

A linguagem musical adotada por Viet Cuong não tem como núcleo as dissonâncias nem efeitos eletroacústicos. Mesmo assim, não soa retrô, mas moderna, bem à frente do minimalismo que, cá entre nós, parece ter se esgotado de vez

O clímax, porém, aconteceu na última peça, uma sacada genial de Bologna. É um concerto que tem como solistas um quarteto de percussão (no caso, o Quarteto Martelo) e robusto ensemble. O compositor é Viet Cuong, de 33 anos. Ele nasceu nos EUA de pais vietnamitas. Estudou em Princeton, Curtis e Peabody, as duas últimas centros de ponta de formação de músicos no país.

Intitula-se Re(new)al e foi composta em 2018. É uma obra que precisa ser vista e ouvida. A movimentação do quarteto de percussionistas conduz o público. Eles começam “dialogando” entre si, cada um com dois copos. Me veio à cabeça imediatamente a famosa peça que Mozart compôs para harmônica de vidro (Adagio K. 356). Depois, passam para um set de bateria encorpada, que tocam a 8 mãos com perfeito sincronismo – e terminam numa marimba. Todo o tempo cordas, madeiras e metais os acompanham.

A linguagem musical adotada por Viet Cuong não tem como núcleo as dissonâncias nem efeitos eletroacústicos. Mesmo assim, não soa retrô, mas moderna, bem à frente do minimalismo que, cá entre nós, parece ter se esgotado de vez e hoje só propicia epígonos um tanto chatos e repetitivos. Cuong opta pelos pulsos regulares, sonoridades cheias, riqueza rítmica, polirritmia. 

Por que a plateia seguiu tão atentamente a obra, de 15  minutos e três movimentos? Porque, como Bologna explicou ao público enquanto os montadores preparavam o palco, a peça é um manifesto pelas energias renováveis. A gente não se dá conta, mas este é um dos mais candentes desafios para a humanidade. Os copos com água retratam “Hidro”; o set de bateria enriquecida com outros instrumentos de percussão remete ao “Wind”, energia eólica; e “Solar”, um frenesi com a marimba, à energia solar. Dá o que pensar. O Brasil é privilegiado nestas três formas de geração de energia que garantirão o futuro da humanidade.

Faltou falar da excepcional qualidade das execuções dos 23 músicos, entre eles o clarinetista da Osesp Ovanir Buosi, solista da obra de John Adams. E de Ricardo Bologna, que proporcionou 60 minutos de músicas do nosso tempo capazes de entreter e emocionar  o grande público que estava na Sala São Paulo na manhã de domingo. 

Músicos do Percorso Ensemble [Divulgação]
Músicos do Percorso Ensemble [Divulgação, Caio Duarte]

 

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