Na ‘Butterfly’ documental de Livia Sabag, faltam os argumentos musicais

por Márvio dos Anjos 17/03/2024

Lívia Sabag tinha uma ideia muito clara para sua Madame Butterfly. Pela conversa prévia que tive com a encenadora desta produção do Theatro Municipal de São Paulo, seu propósito era iluminar o conto da gueixa Cio-Cio-San – especialmente naquilo que o libreto apenas insinua – com base em pesquisa histórica da vida japonesa da segunda metade do século 19. A lógica interna da ação narrada por Giacomo Puccini, para Sabag, não necessita de qualquer intervenção, dada a minuciosa costura entre música e ação. Isso nos leva a uma Butterfly com ares documentaristas – a vida como ela realmente era – a que não estamos acostumados.

Essa visão está plenamente consumada naquilo que se viu na estreia da última sexta-feira, dia 15. A questão que ela inspira, no entanto, é semelhante àquela a respeito da pesquisa sobre "o Jesus Cristo histórico", em oposição ao personagem místico narrado nos evangelhos: o acesso ao primeiro não negará a historicidade do segundo, uma vez que a marca e a influência na história se perpetuaram no tempo. Se o mito gerou e ainda gera história, histórico é, e teremos que lidar com isso. A conversa entre a Butterfly "documental" de Sabag e a visão "canônica" – a que toma, desde 1904, liberdades estéticas calcadas numa ideia ocidental de Japão – nos conduz por uma rota parecida com a do dilema cristão.

O impacto visual da Butterfly de Sabag é inegável pelo que traz de realista. A casa japonesa de Butterfly, situada numa elevação rochosa em frente ao porto de Nagasaki, é aridamente deslumbrante. Há belos tons de sépia ao fundo, numa conversa poética entre a iluminação de Caetano Vilela e a cenografia de Nicolás Boni, que evoca uma ilusão montanhosa irresistível, enquanto, no chão, a morada rústica de Butterfly se deixa testemunhar por uma árvore ressequida, à esquerda do palco. Nesses tons de cinza e terra, "É tudo verdade" se impõe sobre "Assim é, se lhe parece", e os vídeos de Matías Otálora projetados sobre a cena com imagens do filme Oharu – a Vida de uma Cortesã (1952), de Kenji Mizuguchi, ressaltam esse combate – sobretudo no intermezzo sinfônico do Ato II, no qual Sabag propôs uma comovente realidade alternativa para Cio-Cio-San. Nele, a gueixa encontra um honrado tenente americano Pinkerton para a vida em família, na qual seu filho Dor (Lucas Balbino, na estreia) finalmente se chamará Alegria.

Seria necessária uma magnífica moldura musical para que as intenções cênicas ganhassem força no debate que propõem. Não é o que temos

Só a partir do momento em que surge Cio-Cio-San (Carmen Giannattasio, soprano italiana, que se alternará com a japonesa Eiko Senda nas récitas seguintes) é que entenderemos o quanto de nossa antiga fruição de Butterfly será questionada pela produção do Municipal, que também foi vista no Colón de Buenos Aires, em 2023.

A gueixa de 15 anos entra em cena num vestido branco, perceptivelmente oriental, mas desprovido de maior expressão poética. E isso é crítico para a "outra" realidade inerente à Butterfly operística: dificilmente teremos cantoras com menos de 30 anos vivendo este papel, pelo que ele exige de maturidade vocal, o que torna certo ilusionismo sempre bem-vindo. Não são todas as sopranos que são capazes de se transfigurar em adolescentes iludidas, e o suporte jovial no figurino talvez não seja facilmente dispensável para fins de teatro. Com a opção por uma constante monocromia, as vestimentas desenhadas por Sofia di Nunzio – em especial para Butterfly e Suzuki – entediam o olhar com o passar do tempo. Portanto, seria necessária uma magnífica moldura musical para que as intenções cênicas ganhassem força no debate que propõem. Não é o que temos.

Natural de Avellino, próxima a Nápoles, Carmen Giannattasio tem bela voz e já soa como uma Tosca desejável, mas não está pronta como Butterfly. Faltam-lhe compreensão gestual e approach vocal maduro para comunicar o frescor iludido do personagem de Cio-Cio-San. Sua interpretação de "Un Bel Dí, Vedremo" foi tensa, ganhando um caráter profético que a partitura não pede, porque não se cumprirá. Na maior parte do tempo e em especial do primeiro ato, Giannattasio parecia pouco íntima da personagem, soando cerebral em vez de emotiva. Se ainda existe alguma "hierarquia" entre o que se convencionou chamar primeiro e segundo elenco, soou ainda mais questionável a opção de ter no segundo a veterana Eiko Senda, uma pHD no papel – simplesmente pelo que se ouviu dela em dezembro no próprio Municipal, num tributo a Maria Callas.

Nada poderia se salvar pelas vozes masculinas principais. Na pele do tenente Pinkerton, o tenor espanhol Celso Albelo simplesmente se mostrou uma escolha infeliz, um som que por vezes não chegava aos ouvidos quando na sua zona vocal de passagem, embora houvesse volume nas notas mais agudas. Por sua vez, o experiente barítono catarinense Douglas Hahn interpretou o cônsul Sharpless com afinação e entusiasmo em seu timbre de modestos encantos. Destacou-se, do quarteto principal, a ótima mezzo paulistana Ana Lucia Benedetti, que trouxe mel e manteiga ao dueto "Scuoti quella fronde di ciliegio… or vienmi ad adornar", formando com Giannattasio o melhor momento da noite. Há bons motivos para crer que o saldo composto pelo segundo elenco terá resultado superior, com o chileno Enrique Bravo (Pinkerton), e os brasileiros Michel de Souza (Sharpless) e Juliana Taino (Suzuki) escoltando Senda.

Faltaram também concatenação e dinâmica à Orquestra Sinfônica Municipal regida por Roberto Minczuk, na partitura mais impressionista de Puccini. Butterfly não é uma obra que pilota a si mesma, como La Bohème ou Tosca; é talvez o ápice da influência de Debussy na música do mestre de Lucca, justaposta a melodias japonesas intencionalmente despidas de contraponto harmônico. Tudo isso representa o risco de a obra soar pouco conectada quando se ressente de um projeto que respeite o que é parede e o que é biombo. A cena do casamento do primeiro ato soou arrastada, pouco intencional e coadjuvante demais para o visual austero proposto por Sabag. O Coral Paulistano, preparado por Maíra Ferreira, se apresentou refinado, com delicada leitura do coro à bocca chiusa, último trecho memorável de uma produção que, sem concisão para extrair os melhores argumentos musicais de sua proposta documental, resultou penitencial. A verdade só não basta, e Puccini pode ser um homem de muitas culpas, mas sua música continua inocente.

A produção de 'Madame Butterfly' segue em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo até o dia 23 de março; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO

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Carmen Giannattasio e Ana Lucia Benedetti em cena de 'Madame Butterfly' [Divulgação/Larissa Paz]
Carmen Giannattasio e Ana Lucia Benedetti em cena de 'Madame Butterfly' [Divulgação/Larissa Paz]

 

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