Precisão e equilíbrio marcam ‘Ressurreição’ de Mahler no Theatro Municipal de São Paulo

por Nelson Rubens Kunze 04/04/2024

Interpretação contou com ótimas intervenções das solistas Marly Montoni e Carolina Faria, bem como dos coros

Foi muito boa a interpretação da Segunda sinfonia, Ressurreição, de Gustav Mahler, sexta-feira dia 29 de março, no Theatro Municipal de São Paulo. Apresentaram-na a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coro Lírico e o Coral Paulistano, tendo como solistas a soprano Marly Montoni e a contralto Carolina Faria. A regência foi do titular Roberto Minczuk.

Mahler tinha 28 anos, em 1888, quando escreveu o primeiro movimento da obra. É uma peça “acabada”, de quase meia hora de duração, concebida inicialmente como um poema sinfônico, que o compositor chamou de Totenfeier (ritual fúnebre). Com a urgência nervosa com a qual abre até a impactante escala cromática descendente com o qual se encerra, o movimento já é um mundo em si, que contém toda a infinita beleza e fragilidade da existência humana. (Consta que Mahler, dada a envergadura e densidade do movimento, pediu que se desse 5 minutos de pausa antes de seguir com os outros movimentos...)

Com tudo isso, foi uma pena o início sobressaltado da apresentação no Theatro Municipal – havia ainda músicos de pé quando o maestro Roberto Minczuk, ao mesmo tempo em que se virava após os cumprimentos, baixou a batuta e deu o ataque. O momento de tensão ficou comprometido, bem como a concentração dos músicos, como se ouviu na orquestra. Mas, dali para frente, orquestra e maestro se encontraram e interagiram em uma performance muito equilibrada, repleta das angústias e harmonias que a partitura contém. 

Também em razão de sua intensa agenda – Mahler era então já um reconhecido e solicitado regente – demorou alguns anos até que o compositor retomasse a sinfonia. Apenas em 1893, Mahler escreveu o segundo movimento, um andantino de espírito folclórico, e o terceiro, uma versão instrumental da canção do Sermão de Santo Antônio de Pádua aos peixes, tomada do ciclo de canções no qual trabalhava na mesma época, as Canções da trompa mágica do menino (Lieder des Knaben Wunderhorn). E a orquestra foi bem, dando a devida caracterização às diferentes seções, tanto na leveza por vezes dançante do andantino, quanto na fluência contínua, prenhe de musicalidade, do inspirado scherzo.

Também para o quarto movimento Mahler tomou uma canção do ciclo das Canções da trompa mágica do menino: Urlicht (luz primordial), esta praticamente sem alterações. E foi um momento especial da noite a interpretação deste movimento pela ótima mezzo soprano Carolina Faria. Com seu bonito timbre escuro aveludado, acompanhada com atenção pela orquestra, Faria logrou transmitir toda a dor e gravidade do texto: “O ser humano vive em grande tormento... Eu sou de Deus e quero voltar a Deus / Deus pai me dará um pouco de luz / Me iluminará até minha vida eternamente sagrada”.

Apenas um ano mais tarde, em 1894, Mahler encontrou a ideia para o movimento final da sinfonia. Foi no velório do maestro Hans von Bülow, quando ouviu a poesia A ressurreição, de Friedrich Gottlieb Klopstock. Mahler tomou os dois primeiros versos e a partir deles escreveu ele mesmo o texto que serviu de base para um longo movimento escrito para orquestra, coro, soprano e contralto. 

Este final inicia-se qual um trovão. Com mais de meia hora de duração é, assim como o movimento de abertura, um mundo de emoções. Após o explosivo começo, a música leva, entre dúvidas e inquietações, a uma atmosfera de paz e de conciliação. Os coros (preparação de Erika Hindrikson e Maíra Ferreira), em performance muito boa, intervêm apenas nos últimos 15 minutos, primeiro em pianíssimo e a cappella: “Você ressuscitará, sim, você ressuscitará, meu pó, após um breve descanso! Aquele que te chamou lhe dará a vida imortal”.

E, por fim, também a soprano Marly Montoni, de voz clara e bem articulada, em perfeito interação tímbrica com Carolina Faria e com o coro, marcou ótima presença no concerto.

No todo, foi muito bem a Sinfônica Municipal, especialmente na costura das várias seções e na precisão rítmica. O tratamento camerístico que Mahler muitas vezes dá à orquestração soou transparente e orgânico, e estiverem bem equilibradas as passagens em que parte da orquestra toca nos bastidores. E foram caprichadas e felizes também as intervenções solísticas da orquestra – da flauta, do oboé, da harpa, do trompete, do corne inglês e do violino do spalla Alejandro Aldana. 

A apresentação da Segunda sinfonia de Mahler foi um grande sucesso, aplaudida com entusiasmo pela plateia que lotou o Theatro Municipal de São Paulo.

P.S. Duas observações marginais: primeiro, o ruído do ar-condicionado do Theatro Municipal atrapalha; segundo, as solistas conversando no palco durante a apresentação também atrapalha...

Orquestra, coro, solistas e maestro são aplaudidos no Theatro Municipal de São Paulo (Revista CONCERTO)
Orquestra, coro, solistas e maestro são aplaudidos no Theatro Municipal de São Paulo (Revista CONCERTO)

 

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