Alondra de la Parra: “Não sou uma regente, mas uma artista que se especializou na regência”

por Camila Fresca 27/07/2023

A regente mexicana Alondra de la Parra está de volta a São Paulo depois de 10 anos. Dias 27 e 28 (na Sala São Paulo) e 29 (Campos do Jordão), ela comanda um programa que integra o festival Diálogos latinos da orquestra, trazendo na mala obras de compositores mexicanos. O programa ainda conta com o Concerto para violoncelo de Shostakovich, solado por Gabriel Martins.

Foram cinco colaborações com a Osesp entre 2009 e 2013, mas Alondra de la Parra, aos 43 anos, também regeu no Rio de Janeiro e tem um envolvimento com a música brasileira que remonta à infância. Nome de destaque entre as maestras, ela fundou em 2004 a Orquestra Filarmônica das Américas, em Nova York, foi diretora musical da Sinfônica de Queensland (2016-19) e é principal regente convidada da Sinfônica de Milão, além de atuar como convidada de grupos prestigiados como a Filarmônica da BBC, Orquestra de Paris e Tonhalle de Zurique.

Embora ciente das desigualdades do meio musical, ela não gosta de ser vista como uma mulher regente: “Regência não é sobre o que está fora, é sobre o que está dentro”, diz. Nascida em Nova York de pais mexicanos, Alondra de la Parra mudou-se aos dois anos de idade para a Cidade do México e não tem dúvidas sobre quais são suas raízes. No final do ensaio da quarta-feira, dia 26, ela discutia detalhes da Sinfonia impossible com a orquestra, e ensaiava trechos dando instruções em inglês e espanhol. Na sequência, em seu camarim, conversou com o Site CONCERTO.

Você está regendo um programa com obras de mexicanos, dentro de um festival que a orquestra intitulou Diálogos Latinos. Gostaria que falasse delas, começando por Téenek – Invenciones de Territorio da compositora e educadora musical Gabriela Ortiz. 
Gabriela é uma de nossas melhores compositoras em toda a história da música mexicana. Ela é hábil, criativa. Se você consegue ler uma nova peça com uma orquestra do começo ao fim de uma vez só, uma música dessa complexidade, é porque ela é muito bem escrita. Ao mesmo tempo, ela tem a qualidade de não ser hermética, de escrever uma música altamente intelectualizada só pelo prazer de sê-lo. Téenek é sobre espírito, energia, essência, cores. É uma música muito bonita e muito complexa, mas a complexidade tem um propósito. 

A violência contra mulheres e crianças é uma questão alarmante no México. Durante a pandemia, me senti desesperada, sem saber o que fazer. Então juntei uma “orquestra impossível” com os melhores músicos que conheço para fazer um projeto à distância, com o objetivo de angariar fundos

Com relação à Sinfonia impossible, de Arturo Márquez, ela nasceu a partir de La Orquesta Impossible, projeto criado por você para ajudar mulheres e crianças afetadas pela violência no México. Poderia contar como surgiu e no que consiste o projeto?
O projeto foi criado porque a violência contra mulheres e crianças é uma questão alarmante no México, e em todos os nossos países. Durante a pandemia, me senti desesperada, sem saber o que fazer. Então juntei uma “orquestra impossível” com os melhores músicos que conheço para fazer um projeto à distância, com o objetivo de angariar fundos. Acabei me aproximando de Arturo Márquez, pois ele me deixou utilizar sua música, mexer em coisas nela. Trabalhamos proximamente, ainda que à distância, por causa da pandemia. E assim nos tornamos amigos. Dividimos momentos de tristeza, alegria, preocupação. A orquestra é impossível pois se trata de uma orquestra de solistas, com altas demandas técnicas, e também porque não podíamos estar juntos durante a pandemia. O projeto levantou 400 mil euros, doados a entidades de caridade que se dedicam a combater a violência contra mulheres e crianças no México. Acho que foi um exemplo de como a arte pode nos tornar conscientes daquilo que precisamos tomar conhecimento. Foi então que solicitei a Arturo Marquez que escrevesse uma sinfonia. Ainda que ele tenha tantas peças importantes – seu Danzón nº 2 é uma das peças sinfônicas mais tocadas do mundo –, ele nunca havia escrito uma sinfonia. É uma obra concertante, na qual cada movimento tem um solo desafiador e é inspirado por uma emergência humanitária sobre a qual temos que pensar. 

Nós costumamos dizer que o Brasil vive de costas para a América Latina e, de fato, conhecemos pouco os compositores e a música latino-americana em geral. Eu gostaria de saber do oposto: qual é a sua relação com a música brasileira, e como o repertório brasileiro chega no México e nos países latino-americanos com os quais você tem contato?  
Eu amo o Brasil, tenho uma relação muito bonita com o país. Primeiro e sobretudo porque cresci em casa ouvindo música brasileira: samba, bossa nova, Jobim, Elis Regina. Meu pai viveu no Brasil quando era jovem e sempre falava do país como um lugar utópico, onde ele foi feliz. Acho que essa é uma impressão geral, para mim mais acentuada por conta de minha vivência. A primeira orquestra que regi no país foi a Osesp, vim para cá quatro vezes em quatro anos seguidos: nós fizemos Mahler, Beethoven, música brasileira, nós gravamos música juntos. Depois fui para a OSB, no Rio. Então esse é um país no qual trabalhei muito e desenvolvi relações excelentes. A Osesp é incrível, um grande exemplo para a América Latina, pelo que fazem e pelo nível do que fazem. O nível da música, mas também das atividades da instituição como um todo. Também fiz música brasileira com a Filarmônica das Américas, e com outras orquestras. Duas semanas atrás fiz um concerto com obra de Camargo Guarnieri; fiz turnês com Yamandu Costa, regi Francis Hime, Villa-Lobos, Tom Jobim, toquei com o Brazil Guitar Duo. Ano que vem farei uma versão de Orfeu negro. Creio que, musicalmente, o Brasil é um país muito atrativo para a América Latina em geral.  

Em maio, entrevistei JoAnn Falleta, que regeu a orquestra do Theatro Municipal de São Paulo, e perguntei a ela sobre sua trajetória como regente. Como é para você, sendo uma mulher latino-americana e de outra geração, liderar uma orquestra? 
Eu não sei. Eu sempre fui eu e nunca me vi como uma mulher. Regência não é sobre o que está fora, é sobre o que está dentro, sobre o que você ouve. Seu ouvido, sua imaginação, personalidade, suas experiências na vida. Você é um artista como um ator, um diretor de cena. E um ator tem de ser um camaleão que se transforma naquilo que o palco pede, e posso me transformar naquilo que é preciso. Então reduzir isso a ser uma mulher é algo que não posso entender.

É que não é exatamente sobre o que está dentro da música, mas o que está fora: as estruturas, as instituições. 
Sim. Definitivamente não é um caminho igualitário, e nem todo mundo pensa como eu. Mas essa é a forma que me vejo e que vejo meu trabalho. Dividir pessoas entre homens e mulheres, em qualquer área, é muito limitante. Porque todos temos o masculino e o feminino em nós. Então como podemos reduzir as coisas a isso? É assim que vivo. Agora, é claro que sofri muita discriminação, constantemente. Muitas vezes eu não sabia se era porque eu era uma mulher, porque era mexicana, ou jovem, ou sei lá o quê. Eu não sei, porque não veio de mim, e não posso dizer sobre o que vem de fora. 

Se é sobre poder, e é sobre abuso de poder e sobre quão doentia essa indústria pode ser, achei que [o filme Tár] é muito leve comparado à realidade. A realidade é muito pior do que aquele filme, muito pior.

Mas você está a par dos movimentos recentes clamando por igualdade no meio musical...
É claro que tem que haver igualdade. Claro, absolutamente. Sofri essa desigualdade durante os 20 anos da minha carreira. 

Fico com a impressão de que as mulheres seguem tendo dificuldade em ter um posto como titulares de orquestra – o mesmo que acontecia há um século com Antonia Brico.
É verdade, concordo. 

Você assistiu Tár? Marin Alsop afirmou publicamente que não gostou do filme, enquanto JoAnn Falleta me disse que gostou muito. E você, o que achou?
Verdade que JoAnn Falleta gostou? Eu não gostei, concordo com Marin. Para nós, nessa carreira, a última coisa que precisamos é um filme de Hollywood falando de uma mulher tirana. Em primeiro lugar, porque nunca vi uma. Só vi homens se comportando daquela forma. E, em segundo, porque não precisamos desse tipo de ajuda para promover a regência globalmente. Então fiquei bastante desapontada. Eles disseram que não era sobre mulheres, era sobre poder. Se é sobre poder, e é sobre abuso de poder e sobre quão doentia essa indústria pode ser, achei que é muito leve comparado à realidade. A realidade é muito pior do que aquele filme, muito pior. Então, não, eu não gostei, ainda que Cate Blanchett esteja fantástica, ela é uma grande atriz. As atrizes fizeram um ótimo trabalho; mas para nós, que vivemos essa realidade, não foi algo útil. 

Você poderia falar sobre seus projetos futuros? Não necessariamente os que estão em via de se realizar, mas aqueles com os quais sonha.
Eu sonho com muitas crianças participando de orquestras no México, e estou trabalhando para isso. Porque acredito na orquestra como solução para vários problemas humanos. Espero continuar me desenvolvendo na profissão e ser uma fonte de inspiração para jovens músicos. Há muitas coisas a fazer. Por exemplo, agora no México iniciei um projeto com Gabriela Muñoz, uma clown, chamado “O silêncio do som”, para o qual também escrevo os roteiros e faço direção de palco. Nós estreamos este ano no México, iremos para Berlim em turnê, e espero que possamos vir ao Brasil. Para mim é muito interessante, uma outra faceta artística. Claro que estou regendo, mas também estou escrevendo, dirigindo. Eu percebi que não sou exatamente uma regente, mas sim uma artista que se especializou na regência. Como artista posso me expressar de outras formas. Me vejo assim, e é por isso é que não gosto do conceito de maestro tradicional, porque nele a criatividade está morta. É uma figura de poder com expectativas, modismos e coisas não necessárias para a música. Gosto de me enxergar como uma artista que tem uma habilidade específica, mas ela não me define. É por isso que não gosto desses rótulos: regente, mulher, mexicana. É limitador. Somos indivíduos complexos e não uma única coisa. Acho que temos que começar a abandonar esses rótulos, despir o maestro da casaca, quebrar com os estereótipos que a sociedade nos coloca e espera de nós. 

Veja mais detalhes sobre as apresentações no Roteiro do Site CONCERTO

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Alondra de la Parra [Divulgação/Felix Broede]
Alondra de la Parra [Divulgação/Felix Broede]

 

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