Algo importante aconteceu na ópera brasileira

por João Luiz Sampaio 31/12/2022

Em janeiro de 2022, escrevi aqui no Site CONCERTO um texto sobre o que se desenhava para a ópera no Brasil. Era quase otimista, mas com o pezinho atrás sempre prudente quando se escreve sobre o assunto. Prometi, então, que voltaríamos a nos falar em dezembro. Faltam ainda cinco horas até 2023, então cumpro a promessa a tempo. E peço paciência, porque o texto dá uns passeios antes de chegar ao assunto. 

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O Metropolitan de Nova York anunciou na semana passada que vai precisar retirar de seu fundo de reserva US$ 30 milhões para cobrir um déficit provocado pela pandemia e pela baixa presença do público na atual temporada. A informação veio com uma constatação: óperas novas têm conquistado bilheterias superiores às obras do repertório tradicional. E, agora, todas as temporadas serão abertas com um título de autor vivo.

Há nuances a se considerar. A baixa presença (em alguns casos, o teatro teve apenas 40% de ocupação) pode estar relacionada ao ritmo lento com que o público está fazendo seu retorno a atividades culturais depois da pandemia – e isso é cruel para um teatro que apresenta óperas seis dias por semana durante a temporada. Segundo levantamento da Impact Experiences, que desenvolve pesquisas ligadas ao setor cultural, as artes cênicas ocupam a 11ª posição na lista (ou no final da lista) de atividades que os norte-americanos estão dispostos a retomar no retorno à vida pós-pandemia.

A recuperação do turismo em Nova York também é um fator a se considerar: segundo o New York Times, a expectativa é de que o setor volte a números pré-pandemia apenas em 2025 (antes da paralisação por conta da Covid, turistas representavam 20% da plateia do Met; atualmente, são apenas 8% do público). E, em um cenário no qual muitas famílias estão ainda lidando com as perdas financeiras dos últimos três anos, ingressos que podem chegar a US$ 300 são um obstáculo. 

As óperas contemporâneas, no entanto, saíram-se bem. Por quê? Há um cansaço com relação ao repertório? É difícil dizer, mas não custa olhar alguns números. A Opera America, associação que reúne as principais casas de ópera dos Estados Unidos, faz levantamentos anuais sobre as obras mais apresentadas no país. 

Não houve grandes mudanças nas obras que estão no topo da lista de mais encenadas em quase cinco décadas

Na temporada 2016-2017, os títulos mais encenados, em ordem descrescente, foram Carmen, de Bizet; Madama Butterfly, de Puccini; A flauta mágica, As bodas de Fígaro e Don Giovanni, de Mozart; La Traviata, de Verdi; Tosca, de Puccini; Eugene Oneguin, de Tchaikovsky; Rigoletto, de Verdi; e Romeu e Julieta, de Gounod.

Na temporada 2017-2018, O barbeiro de Sevilha, de Rossini; La Traviata; La bohème, de Puccini; Rigoletto; Carmen; Tosca; As bodas de Fígaro; Madama Butterfly e Turandot, de Puccini; e Don Giovanni. No ano seguinte, temporada 2018-2019: La bohème, La Traviata, Carmen, Barbeiro de Sevilha, Madama Butterfly, João e Maria, de Humperdinck, Rigoletto, Don Giovanni, Bodas de Fígaro e Eugene Oneguin.

Os levantamentos param aqui uma vez que as duas temporadas seguintes foram marcadas pela pandemia e a atual não terminou. Por curiosidade, voltei no tempo, à lista das dez mais de 1970: Carmen, Madama Butterfly, Aida, Il trovatore, La traviata, de Verdi, Tosca, O morcegoI pagliacci, de Leoncavallo, Cavalleria rusticana, de Mascagni, e Fausto, de Gounod.

Esses são dados do mercado americano. Mas eles não diferem muito do que acontece em todo o mundo. Levantamento do site OperaBase sobre a temporada 2018-2019 chegou aos seguintes dez títulos mais encenados no planeta: La Traviata, A flauta mágica, Carmen, La bohème, Tosca, Madama Butterfly, O barbeiro de Sevilha, As bodas de Fígaro, Don Giovanni e Rigoletto.

A referência no levantamento de produções realizadas no Brasil é a pesquisa de Sergio Casoy publicada em A Ópera em São Paulo: 1952-2005. Os últimos dados são de quase vinte anos atrás, é verdade. Mas vale a pena dar uma olhada nas óperas com o maior número de récitas no período coberto pelo livro. A primeira é a opereta A Casta Suzanna, de Jean Gilbert – mas Casoy ressalta que este é um número a ser relativizado, pois o título foi encenado apenas uma vez, em 1966. Do segundo ao décimo lugar, são esses os títulos: Madama Butterfly (59 récitas), La Traviata (54), La bohème (52), Tosca (51), Carmen (49), Cavalleria rusticana (44), I pagliacci (42), O barbeiro de Sevilha (41) e Aida (32).

As listas se parecem demais. São os mesmos títulos e, quando não são, repetem-se os compositores. Dá para falar de outro jeito: não houve grandes mudanças nas obras que estão no topo da lista de mais encenadas em quase cinco décadas. 

Parece incrível. Mas é assustador. 

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Uma coisa talvez não tenha nada a ver com a outra. Mas o pianista e professor da City University de Londres Ian Pace publicou em julho um artigo na The Critic Magazine, Is Classical Colonial?, no qual defende que iniciativas naïve de descolonizar a música clássica ocidental podem levar à perda da riqueza de sua história. 

O texto, que ressurgiu nas redes nos últimos dias, tem como ponto de partida a informação vazada de que, na Universidade de Oxford, os debates sobre o currículo de música têm sido influenciados pela noção de que a música europeia produzida por brancos durante o período da escravidão deve ser vista como “um sistema representacional colonialista”. Pouco depois, a Universidade de Cambridge anunciou a criação de uma cadeira batizada de “Descolonizando o ouvido”. Outra referência a dar mote ao artigo foi a renúncia de J. P. E. Harper-Scott do posto de professor da Royal Holloway: o musicólogo afirmou que a decisão foi motivada pelo fato das universidades terem se tornado “ambientes dogmáticos” e por conta de uma retórica sobre descolonização “que não admite dúvidas, críticas ou desafios”.

Em sociedades desiguais, em que as oportunidades não são as mesmas, há de se falar de igualdade mas, principalmente, de equidade

Vale a leitura do texto de Pace, muito menos raivoso e incoerente do que boa parte dos libelos de quem vem reivindicando a necessidade de se proteger o legado da música clássica ocidental. No limite, afirmam, chegamos a uma época em que é preciso estar alerta pois a qualquer momento será proibido a orquestras tocar a música de Beethoven. Se entrarmos, então, em questões identitárias... Logo maestros serão proibidos de trabalhar, pois só maestras poderão reger (o termo “maestra”, por sinal, causa arrepios), ou então brancos serão vetados em orquestras e teatros de ópera, que só poderão escalar cantores negros sob o risco de cancelamento do público e crítica. 

O debate é importante, mas argumentos como esses não podem mais ser levados a sério. Assim como a desculpa de que a qualidade é sempre o critério, e um critério neutro. Em sociedades desiguais, em que as oportunidades não são as mesmas, há de se falar de igualdade mas, principalmente, de equidade. Como disse Afa Dworkin, diretora da Sphinx Organization, que trabalha para criar oportunidades para músicos negros nos Estados Unidos, em recente entrevista à Revista CONCERTO: imaginar que, se o músico tem talento, terá as mesmas oportunidades que qualquer outro, independentemente de sua história de vida e dos desafios enfrentados, é muito fácil. E enganoso. 

Acreditar que a abertura em direção a outras culturas ou que os debates sobre representatividade significam relativizar a qualidade como critério é um preconceito por si só e joga para escanteio a curiosidade e o desejo de descoberta

Assim como defender a noção de um cânone como algo que ultrapassa as épocas, e que por ter passado pelo teste do tempo (desculpem o clichê), precisa ser preservado, fazendo de músicos e orquestras buchas de canhão em uma luta sagrada em defesa do patrimônio ocidental. É uma compreensão equivocada da própria noção de cânone. Como escreve William Weber em A História do Cânone Musical, tal cânone “foi definido variadamente como uma força moral, espiritual e cívica; esses foram os termos nos quais a tradição musical clássica foi definida em seu plano mais fundamental”.

O texto de Weber foi traduzido para o português por Marcos Câmara de Castro para uma reunião do grupo EsTraMuSE e ainda não foi editado. Mas está disponível na internet e é leitura fundamental sobre o assunto (clique aqui). Ele elenca diversos elementos a estabelecer o valor de uma obra, e mostra, entre outras coisas, que, se clássicos são obras individuais consideradas grandes, cânone “é a moldura que suporta sua identificação em termos críticos e ideológicos”.

Nesse sentido, ele dialoga com Joseph Kerman, que antes dele chamava atenção ao fato de que há um componente político no estabelecimento de um cânone, que é influenciado por uma complexa variedade de forças sociais, ideologias e rituais. Assim, o cânone diz menos sobre um passado que se impõe sobre o presente e mais sobre o presente e os temas que nele são fundamentais e fazem parte do debate contemporâneo.

Acreditar que a abertura em direção a outras culturas ou que os debates sobre representatividade significam relativizar a qualidade como critério é um preconceito por si só e joga para escanteio a curiosidade e o desejo de descoberta, tão importantes para a atividade artística. Uma descoberta que está tanto no olhar mais amplo para o passado como na aposta na criação de novas obras como caminho incontornável, que se torna mais rico se estivermos abertos à diversidade como ponto central de nosso tempo. Volto, então, rapidamente, ao Metropolitan de Nova York. Os desafios de uma instituição com suas características são imensos. Mas colocar novas óperas como estratégia para a construção de uma nova relação com o público é um dado novo que não pode ser ignorado.

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Levando tudo isso em consideração, a temporada lírica de 2022 no Brasil foi um momento importante de reflexão. Ao todo, foram estreadas catorze óperas escritas recentemente por autores brasileiros. Uma conta rápida registra 31 óperas encenadas no Brasil no último ano. Isso significa que quase metade do repertório foi composta de obras novas. Não é um número banal, assim como o fato de que a maior parte delas (dez) foi fruto de encomendas de teatros e instituições musicais. 

Navalha na carne, de Leonardo Martinelli, e Homens de papel, de Elodie Bouny, trouxeram para a ópera a dramaturgia contundente de Plínio Marcos sobre “gente abandonada à própria sorte e a uma solidão sem fim à margem, invisíveis, sem voz nem vez”, nas palavras do ator e dramaturgo Oswaldo Mendes. Café, de Felipe Senna, também se voltou a um clássico da literatura brasileira, Mário de Andrade, atualizando o tema da luta de classes e da injustiça social. Apresentadas no Theatro Municipal de São Paulo, são três obras bastante diferentes. Martinelli aposta na crueza como força de diálogo com o presente, Bouny a mistura à busca de lirismo, como alguém que se afoga procura um resto que seja de ar. E Senna, na forma e no conteúdo, faz de seu Café uma afirmação política em tempos de barbárie.

No Festival de Música Erudita do Espírito Santo, A procura da flor, de André Mehmari e Geraldo Carneiro, evoca outro mestre da literatura, Machado de Assis e seu Esaú e Jacó, e crítica social e história de amor se misturam em um jogo de nuances que tem o tempo – um tempo que é também histórico e fala de Brasis diferentes e iguais – como personagem. Tim Rescala, por sua vez, em trabalho para a Orquestra Ouro Preto, sintetiza O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, à luz da tradição da ópera cômica italiana. 

O canto do cisne, de Martinelli com libreto de Livia Sabag a partir do conto de Tchékov, mergulha no mundo interno de uma atriz que reflete sobre o vazio que sente ao revisitar seu passado. Mas o eu lírico, aqui, também se volta para o presente ao quebrar a quarta parede, unir Tchékov a Brecht e duvidar de si mesmo. A obra foi apresentada no Theatro São Pedro de São Paulo, que também levou ao palco as três primeiras peças de seu Atelier de Criação. Três jovens compositores, três jovens libretistas, trabalhando juntos para pensar a ópera hoje. As temáticas atuais fizeram-se presente. O presidento, de Gabriel Xavier e Lara Duarte, é uma reflexão sobre discursos identitários; A fome dos cães, de William Lentz e Carina Murias, leva ao palco os ossos que se tornaram o alimento possível para milhões de brasileiros; e EnTre (CAcOS), de Marina Figueira e Isabela Rossi, aborda o mundo do trabalho, a partir de um libreto inspirado em ruas escuras e cães abandonados.

Realejo de vida e morte, apresentada no Sesc Pompeia, leva a um novo patamar a potência da visão artística de Jocy de Oliveira, que fala de desejos e esperanças no cenário apocalíptico de um mundo que desaparece sob o mar. Na Bienal Ópera Atual, no Rio, foram apresentadas três obras. Não vi o espetáculo, recorro à descrição das obras: Larilá, de Arrigo Barnabé, conta a história de uma menina que vende mariolas no trânsito; Dadá, de Armando Lobo, inspira-se na figura de Dadá, companheira do cangaceiro Corisco; e Protocolares, de Mário Ferraro, narra as três missões de um servidor público no Brasil, que decide cumprir literalmente tudo que lhe é pedido, segundo os prazos dados, mesmo que contrarie qualquer lógica de razoabilidade. 

Algo de importante aconteceu na temporada de 2022. Pelas obras criadas e pelas reflexões sobre o fazer artístico que elas propõem, em meio a uma programação que trouxe ainda montagens que estão entre as melhores dos últimos anos, como o Peter Grimes, de Britten, no Festival Amazonas; O amor das três laranjas, de Prokofiev, no Theatro Municipal de São Paulo; ou Ariadne em Naxos, de Strauss, e Os Capuletos e Montéquios, de Bellini, no Theatro São Pedro. 

O que nos espera em 2023? Descobrir se esse é um movimento perene ou um sintoma assustado da pandemia.

Nos falamos, então, em dezembro de 2023.

Cena de 'Homens de papel', de Elodie Bouny [Divulgação]
Cena de 'Homens de papel', de Elodie Bouny [Divulgação]
Cena de 'Café', de Felipe Senna [Divulgação]
Cena de 'Café', de Felipe Senna [Divulgação]
Cena de 'Navalha na carne', de Leonardo Martinelli [Divulgação]
Cena de 'Navalha na carne', de Leonardo Martinelli [Divulgação]
Cena de 'Aleijadinho', de Ernani Aguiar [Divulgação]
Cena de 'Aleijadinho', de Ernani Aguiar [Divulgação]

 

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