O futuro do teatro de ópera está fora do teatro de ópera?

por João Luiz Sampaio 26/10/2020

As primeiras postagens celebrando o Dia Mundial da Ópera mal haviam sido publicadas quando as redes sociais passaram a replicar aquela que seria a notícia principal do domingo: o governo italiano determinou que seus teatros e salas de concerto sejam fechados novamente, por pelo menos mais um mês, decisão tomada após os números indicarem a iminência de uma nova onda de contaminação pelo coronavírus na  Europa. 

As celebrações continuaram. Mas a coincidência serviu para nos lembrar uma vez mais do momento delicado que o gênero vive. A data foi criada para nos relembrar da importância da ópera, do íntimo significado na vida das pessoas a um mercado que movimenta bilhões de dólares por ano. Mas este mercado está parado. A orquestra no fosso, a presença de coro, os cantores – tudo isso coloca questões específicas para o gênero em meio aos protocolos de segurança sanitária.

Estamos exagerando? Bater boca no Facebook não muda a realidade. E ela, no mínimo, sugere que o tal “novo normal” não é um passe livre e que, mesmo retornando, as atividades musicais seguirão sujeitas a interrupções pontuais, ao menos até que exista a vacina e que a população esteja de fato imunizada. A vacina ainda não existe. E, na distopia tupiniquim, quando existir, precisará superar barreiras políticas criminosas colocadas pelo presidente de uma nação que... bom, vocês têm visto o noticiário.

A soprano Christine Goerke na cena final de 'Twilight: Gods" [Divulgação]
A soprano Christine Goerke na cena final de 'Twilight: Gods" [Divulgação]

Não vemos a hora de que tudo volte ao normal e possamos estar sentados em plateias lotadas, assistindo a grandes montagens. Mas, de alguma forma, o que acontecerá depois da pandemia tem a ver com o que aconteceu durante a pandemia. Quando a atividade musical foi interrompida, ganhou espaço um esforço de reflexão a respeito de como esse meio musical está organizado. Diversidade racial e de gênero, a identificação de novos públicos com quem é preciso iniciar uma conversa real, a criação de espaços democráticos e inclusivos para a arte – todas essas questões estão sendo debatidas. Pode ser que, daqui a um ano, a pandemia tenha sido superada. E que estejamos buscando esquecer tudo o que passou. É da natureza humana tentar abandonar no passado aquilo que machuca. Mas todos sabemos que a superação do trauma só vem mesmo quando o confrontamos abertamente. E aprendemos com ele.

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Na última edição da revista New Yorker, o crítico Alex Ross comentou um espetáculo produzido recentemente pela Ópera de Detroit, uma versão do Crepúsculo dos Deuses, última parte da tetralogia O Anel do Nibelungo, de Richard Wagner. O conceito foi criado pelo diretor Yuval Sharon, nome chave da vanguarda norte-americana e presença constante no palco do Festival de Bayreuth, a meca wagneriana no norte da Alemanha.

O local escolhido foi um prédio de estacionamento no centro da cidade – cuja história está ligada intimamente à indústria automobilística. Os cenários e cenas foram distribuídos pelos seis andares e eram vistos à medida em que o público, em seus carros, subia pelas rampas – ouvindo o áudio da apresentação, captado ao vivo, pelo rádio. A música precisou ser repensada e arranjos para poucos instrumentos foram preparados: um violoncelo solo para a cena de Waltraute, um trio de contrabaixo, clarinete e acordeão para o dueto entre Hagen e Alberich; um quinteto com violino, harpa, marimba e vibrafones para as águas do Reno; e assim por diante.

Ross gostou do que viu, como realização musical e proposta artística. “Guias seguravam placas indicando que deveríamos seguir o Mustang. Os espectadores dirigiram até o telhado, onde Brünhilde desceu do seu veículo e cantou seu monólogo final em meio a um cenário de carros queimados, com o skyline de Detroit, ameaçador, como pano de fundo”, escreveu. “O Crepúsculo dos Deuses termina com uma visão gloriosa e vaga de um futuro melhor, na forma de uma melodia que se desenvolve lentamente nos violinos. O design de som para o espetáculo funcionou perfeitamente durante todo o tempo, mas, propositalmente, o sinal do rádio tornou-se cada vez mais fraco nos momentos finais: explosões de estática obscureceram a promessa de redenção de Wagner. Tentei não tomar isso como um presságio.”

Logo que o espetáculo estreou, um sagaz comentarista correu ao Twitter para fazer um alerta. “Atenção, não se deixem enganar”, escreveu, “este não é o original de Wagner”. Não, não é. E daí? Pelos relatos da crítica, a obra do compositor estava ali, como força criativa fundamental de um espetáculo que tinha como objetivo refletir sobre o contexto atual e estabelecer um paralelo entre a narrativa da morte dos deuses e a situação política norte-americana. E que escolheu a ópera para isso, utilizando a rua como espaço de debate sobre a cidade, um tema que, em tempos nos quais a discussão sobre cidadania e sobre o público e o privado se resume à ousadia imbecil de sair de casa sem uma máscara, deveria ser urgente.

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Há pouco mais de uma semana, um webinário promovido pela Fundação Clóvis Salgado realizou uma dezena de debates sobre o momento atual da ópera (a cobertura completa você pode ler aqui no Site CONCERTO). As mesas abordaram temas dos mais diversos, como a presença das mulheres e dos negros no mercado, a importância de novas obras, a criação de redes de parceria, a busca pelo público etc. E um aspecto que me chamou atenção foi a presença de temas recorrentes em meses de assuntos diversos, o que me parece sugerir a existência de uma agenda comum a ser explorada. 

Entre esses temas, apareceu com frequência a ideia de uma atividade operística fora do teatro de ópera. Ela assume diferentes formas. De maneira simbólica, alguns convidados falavam de uma programação que reflita uma mudança na nossa percepção do que é ou pode ser um teatro de ópera. Mas outros referiam-se mesmo ao espaço físico, abordando diversas problemáticas: em cidades pequenas, sem teatros ou meios para se manter corpos estáveis, buscar espaços alternativos impõe-se como caminho possível, inclusive para a formação de redes e corredores de encenação; para a experimentação com novas obras, teatros menores podem ser espaços privilegiados para a criação de laboratórios contemporâneos de criação, envolvendo compositores e intérpretes; para a formação de jovens artistas, o grande teatro de ópera pode ser visto como ponto de chegada de um processo que precisa passar por outros espaços onde o treinamento se complete.

Nenhuma dessas propostas questiona a necessidade de um teatro de ópera para uma cidade ou sugere que o espetáculo operístico como o conhecemos deve ser abandonado. Pelo contrário, a descentralização da ópera - do ponto de vista físico mas também da abertura de espaço a novos e diversos olhares, com maior ocupação da cidade - teria como consequência final uma própria valorização da atividade, com a qual todos sairiam ganhando. (Nesse sentido, me parece que as instituições mais sólidas deveriam participar nesse processo de descentralização – já acontece na Espanha e, antes da pandemia, o Metropolitan de Nova York esboçava primeiros passos nessa direção.)

Enfim, o fato é que a pandemia colocou a questão do espaço físico, que já era discutida de forma discreta, no centro da atividade operística: como fazer ópera fora do palco tradicional? A internet é um caminho, com bons experimentos sendo realizados e outros ainda a serem testados. Mas um espetáculo como o apresentado em Detroit nos coloca outras possibilidades. Para tanto, é preciso coragem, tanto para relativizar o conceito de original como, mais importante, para realocar os recursos disponíveis e os esforços criativos para algo que não é familiar. Algo que traz riscos, mas também a possibilidade de mostrar o gênero ainda mais vivo do que quando entramos na pandemia. 

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Comentários

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O articulista faz importante análise afirmando: "... força criativa fundamental de um espetáculo que tinha como objetivo refletir sobre o contexto atual e estabelecer um paralelo entre a narrativa da morte dos deuses e a situação política norte-americana. E que escolheu a ópera para isso, utilizando a rua como espaço de debate sobre a cidade, ..." Se é importante a ópera sendo utilizada, fora do teatro, na rua, como objetivo para se refletir sobre o contexto atual e estabelecer um paralelo entre a narrativa da morte dos políticos deuses corruptos e a situação política de um país, então o articulista já deveria ter escrito artigo sobre as "óperas de rua" que venho compondo e apresentando em Brasília há mais de 10 anos.

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