Pontes em vez de barreiras 

por Luciana Medeiros 04/11/2020

Ainda não sabemos ao certo quais aprendizados ficarão desses estranhos tempos de peste. Mas a encenadora e professora Livia Sabag já percebeu que emergiram questões ricas, repletas de interessantes paradoxos, e é esse conceito que embasa sua curadoria da edição 2020 do Festival de Música Erudita do Espírito Santo, evento da Companhia de Ópera do Espírito Santo, de Tarcísio Santório, com parceria de Natércia Lopes. 

O primeiro paradoxo, claro, é o fato de estarmos presentes e ao mesmo tempo longe, intermediados por telas e telinhas – esta oitava edição do festival, que vai de 6 a 28 de novembro, será, naturalmente, transmitida pelas plataformas digitais, em vez de reunir compositores, intérpretes e acadêmicos no Teatro Carlos Gomes, em Vitória, e em palcos itinerantes, como nos anos anteriores. Livia, diretora de elogiadas produções ópera, resumiu o percurso conceitual no título, Fronteiras: interdição e permeabilidade.

“É a primeira vez que o festival tem uma abordagem curatorial; até o ano passado, havia uma montagem operística a cada edição, e os concertos eram programados com artistas que se inscreviam por meio de editais”, conta a paulistana que hoje mora em João Pessoa, na Paraíba, e já vem marcando presença no festival desde 2013. “Não podemos fugir do momento. As diferenças e as desigualdades ficaram gritantes com a eclosão da pandemia. Por outro lado, estamos juntos no mesmo barco, no mundo todo.” 

O motor da ação simultânea de ideias opostas – liberdade versus contenção, global e local, perto e longe – se estendeu para o questionamento das fronteiras culturais. “Buscamos o que está tão perto e não se costuma programar – música portuguesa e latino-americana com ênfase dos séculos XX e XXI, por exemplo, assim como a produção das compositoras, ainda muito pouco visível.”

Livia Sabag [Divulgação]
Livia Sabag [Divulgação]

A programação tem a consultoria musical de Gabriel Rhein-Schirato e traz, nos oito concertos transmitidos ao vivo pelo YouTube, peças com histórias entrelaçadas – como as do português Fernando Lopes-Graça e de Claudio Santoro. Livia exemplifica: “Temos em dois dos programas a obra de Lopes-Graça, um dos principais criadores da música portuguesa no século XX, que era militante antissalazarista, mantinha contato com Guerra-Peixe e com Santoro e teve orientandos brasileiros, como Kilza Setti; teremos uma noite com música portuguesa e argentina, reunindo peças de Astor Piazzolla, Daniel Schvetz, argentino radicado em Portugal que dialoga com a obra de Piazzolla, e do português Eurico Carrapatoso, um dos mais prolíficos compositores do país hoje”. São influências e confluências que a curadoria de Livia procura desvendar, “construindo pontes, não muros”, reforça ela.

O festival, desta vez, não tem ópera, mas as obras também transitam, nos roteiros, no que a curadora chama de “dramaturgia”: “Há um texto interno, como no concerto final, em que tratamos da mulher, que começa com o tema da opressão feminina, com Who Cares if She Cries?, de Jocy de Oliveira, e O nascimento de Lilith, de Tatiana Catanzaro, e caminha para um olhar mais poético e esperançoso na música de Najla Jabor, Terezinha Dora e Babi de Oliveira”. 

A atmosfera visual dos concertos, que acontecem sempre às sextas e aos sábados às 20h no palco do Teatro do Sesi-ES, será cuidada pela cineasta capixaba Úrsula Dart. “Importante que seja um olhar específico, bem trabalhado. Agora, afinal de contas, não estamos registrando um concerto em vídeo; o concerto é o vídeo”, lembra a curadora. As cinco mesas de debates, de 7 a 28 de novembro, secundam em discussões todos os temas que a curadoria destacou: compositoras de concerto, a música contemporânea, pontes Brasil-Portugal, erudito e popular e uma metaconversa sobre música clássica e audiovisual. 

A Camerata Sesi é a orquestra residente do festival, com regência de Gabriela Queiroz, e Helder Trefgzer estará à frente da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, em participação especial no concerto de encerramento. Entre os intérpretes desta edição constam o violinista Emmanuelle Baldini, as cantoras Camila Titinger, Manuela Freua, Marina Considera e Priscila Aquino, o pianista Ricardo Ballestero, o acordeonista Luciano Maia e o violonista Bruno Madeira. “Taí: as possibilidades deste novo tempo são tão imensas que a gente acaba ficando com vontade de fazer muito mais, trazer mais gente e continuar a se aprofundar nos temas. Fazer sempre mais e mais pontes, isso é o que vale”, encerra Livia.

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