Guarulhos faz boa encenação de ‘Vanessa’, de Barber

por Nelson Rubens Kunze 04/09/2019

Em estreia brasileira, ópera ganhou montagem inteligente e contou com bons solistas
 
É uma pequena revolução que o maestro Emiliano Patarra vem fazendo em Guarulhos, munícipio da Grande São Paulo. Em 2003, criou ali a Orquestra Sinfônica Jovem de Guarulhos, corpo estável do Conservatório Musical de Guarulhos. Desde então, vem desenvolvendo, de maneira persistente e quase teimosa, um trabalho artístico que a cada ano vem crescendo em repercussão e qualidade. O mais recente sucesso da empreitada foi a montagem da ópera Vanessa, de Samuel Barber, apresentada em duas récitas no último fim de semana (assisti no dia 31 de agosto).

Vanessa foi escrita para o Metropolitan Opera House de Nova York, em 1956-57. Originalmente em 4 atos, foi revista em 1964 para uma estrutura em 3 atos, que é a versão hoje normalmente apresentada. A ópera trata da “história de duas mulheres, Vanessa e Erika, diante do grande dilema que todo o ser humano enfrenta: lutar pelos próprios ideais a ponto de fechar-se à realidade, ou aceitar a solução de compromisso com aquilo que a vida oferece, às vezes até mesmo mentindo a si próprio, só para poder viver”, nas palavras do autor do libreto, Gian Carlo Menotti, companheiro de Barber e igualmente consagrado compositor. São duas horas de música em uma linguagem moderna-neorromântica, de grande força expressiva e teatral, que tem ecos de Puccini, Janácek e até mesma da música de cabaré de Kurt Weill. Apesar disso, contudo, o idioma é absolutamente consistente.

Em seu livro “A ópera nos Estados Unidos”, Lauro Machado Coelho fala do “retumbante sucesso” da estreia norte-americana, em 1959, mas conta que a ópera não foi bem recebida na Europa, onde estreou no ano seguinte, no Festival de Salzburg: “O establishment dodecafônico, que dominava a crítica germânica nessa época, reagiu violentamente à música ‘fora de época’ de Barber”. [Lauro segue, observando: “O que continua acontecendo até hoje (2004). Causou espécie aos ouvintes – e foi causa de polêmica na Revista CONCERTO, de São Paulo – a forma desairosa como as notas de programa trataram o compositor, quando a Osesp incluiu em um de seus programas o Concerto para violino, uma das mais belas páginas do repertório para esse instrumento, no século XX”.]

Foi muito boa a montagem dirigida pelo maestro Emiliano Patarra e pelo diretor cênico Marcelo Cardoso Gama, no Teatro Adamastor Centro, em Guarulhos. Como o teatro não dispõe de fosso, a grande orquestra foi posicionada na parte de trás do largo palco, separada da cena por uma grande cortina negra. Os cenários, simples, mas de bom gosto e grande efetividade, se resumiram a alguns mobiliários. Com uma inteligente movimentação dos atores – em um fundo predominantemente escuro, em que sobressaiam os cenários e os figurinos brancos, de noivas, de Vanessa e Erika –, Gama construiu criativas e emocionantes cenas teatrais – a delicada e emocionante passagem em que Anatol seduz Erika com o beijo na mão, mais tarde Érica sentada à mesa relembrando o beijo, ou a cena do casamento com a orquestra descortinada, são apenas alguns dos momentos marcantes que atravessam a apresentação. Os cenários e figurinos foram de Ricardo Cosendey e Wagner Antônio foi o responsável pela iluminação.

Vanessa foi interpretada pela soprano Tati Helene, de voz clara e sonora, com ótima presença em cena. Luisa Francesconi, que fez a sobrinha Erika, destacou-se pelo cuidado vocal, riqueza de timbre e talento teatral. O tenor Flavio Leite, de voz mais aveludada, mas um pouco irregular em algumas passagens agudas, interpretou Anatol com boa caracterização. O elenco foi bem completado por Marcelo Ferreira (doutor), Juliana Taino (no papel da baronesa) e Flavio Lauria (mordomo).

Foi muito satisfatório o desempenho da Orquestra Jovem de Guarulhos e do Coraleste, dirigidos com a devida energia e senso teatral por Emiliano Patarra.

Vanessa, que trata da dependência emocional e perda vital de duas mulheres, conquistou o Prêmio Pulitzer em 1958. O Prêmio Pulitzer de 2018, 60 anos depois, é da ópera Prism, de Ellen Reid, que estreia hoje em São Paulo. Mais um mergulho nas profundidades inauditas e muitas vezes tenebrosas das relações humanas. Óperas vivas, óperas de hoje.

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Ópera Vanessa, produção da Orquestra Jovem de Guarulhos [Revista CONCERTO]
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