Concerto de abertura da temporada da Orquestra Jovem do Estado não apenas confirmou o talento e a maturidade o grupo, mas também reforçou a importância de investir em jovens músicos e em novos e inspiradores repertórios
O que pode ser melhor do que música ao vivo? Música ao vivo tocada por jovens. Quando a interpretação também é de alto nível, a experiência atinge seu ápice. Foi o que aconteceu na Sala São Paulo, no domingo, dia 23, na abertura da temporada 2025 da Orquestra Jovem do Estado.
Diferentemente de muitos profissionais adultos, jovens músicos raramente caem na rotina. Investem corpo e alma na interpretação, transmitem entusiasmo e fé no que estão tocando. Ao final do concerto, era bonito ver a vibração e os abraços que trocaram aqueles músicos de grande futuro.
O programa foi muito estimulante. Há nas salas de concerto, muitas vezes, um espírito de rotina nas escolhas das obras, guiado pela falta de imaginação ou pelo desejo de agradar o público com peças já consagradas. É importante, está claro, que as obras de Beethoven, Brahms, Mahler, Tchaikovsky sejam apresentadas, mas é essencial que o os regentes ousem, e façam seus ouvintes descobrirem belas composições menos conhecidas.
Nesse sentido, a escalação de domingo foi formidável.
Alla Pavlova não é um nome frequentemente anunciado em concertos, e sua suíte The Old New York Nostalgia foi uma revelação para muitos, possivelmente marcando sua estreia no Brasil. Pavlova, nascida na Ucrânia em 1957, estudou em Moscou, especializou-se na Bulgária e mudou-se para Nova York em 1990. Sua música, disponível em plataformas como o Spotify, merece ser explorada (leia mais aqui).
Sua Suíte traz reminiscências das variadas culturas que ela atravessou. É uma obra delicada, com nuances suaves e um tom camerístico, exigindo da orquestra precisão e sensibilidade para desenvolver seus temas longos e nostálgicos.
Imediatamente emanou da orquestra a polidez fosforescente, sedosa, das cordas, num equilíbrio com os outros timbres, sobretudo os ouros do trompete e os acobreados dos saxofones. Foi a prova dos nove para que se pudesse constatar a sensibilidade fina do conjunto.
Não poderia ser maior o contraste com o que se seguiu: o Concerto Fantasy para dois (no caso, duas) timpanistas e orquestra, de Philip Glass. Supus que fosse uma estreia brasileira, mas o próprio maestro Cláudio Cruz já o havia regido com a Orquestra Sinfônica Brasileira em 2024, no Rio de Janeiro. De qualquer forma, é uma obra incomum e nada banal.
Às suavidades de Pavlova substituíram-se forças enérgicas e barulhentas. O Concerto de Glass se inscreve na tradição dos jogos entre solista e orquestra e apresenta uma veemência toda romântica. A diferença é que, em vez de um pianista, violinista ou outro instrumento tradicional, que “dialogam”, como se diz comumente, com a orquestra, houve uma verdadeira batalha travada entre a barulheira de muitos tímpanos em primeiro plano, e o resto da orquestra. É preciso um extremo senso do equilíbrio para um não esmagar o outro, e para que a formidável energia rítmica se expanda em vibração.
Foi o que ocorreu. O resultado foi uma força sonora fantástica, estimulante, muito poderosa. As duas solistas, Elisabeth Del Grande (timpanista emérita da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e Fernanda Kremer (chefe de naipe da Orquestra Sinfônica Brasileira) enfrentaram uma partitura repleta de tremendos desafios com uma presença física (nada mais físico do que os tímpanos) e com o sentido não apenas do ritmo, mas de sonoridades, dosagens e nuanças em gradações infinitesimais. O terceiro e último movimento do Concerto Fantasy é tomado por extensa cadência, pulsante, dionisíaca. O público levantou-se como se movido por mola, explodindo em aplausos.
As solistas presentearam o público com um bis, trecho das cadências de um concerto que suponho ambicioso, escrito por Werner Thärichen, que foi timpanista principal da Filarmônica de Berlim, intitulado Paukerkrieg “Batrachomyomachia” (A guerra dos mestres, Batracomiomaquia, esta palavra sendo o título de um poema satírico da antiguidade que imita Homero ao descrever um conflito entre sapos e ratos), e que inclui, além da percussão solo, orquestra e coro. Busquei como pude, e só encontrei fragmentos dessa obra, que dão vontade de descobri-la, por inteiro.
Na segunda parte do concerto, o maestro Cláudio Cruz escolheu a terceira sinfonia de Rachmaninov. O compositor é celebérrimo, mas sua Terceira Sinfonia, muito menos. Mal-amada, subestimada, ainda hoje, enfrenta certo desdém por parte de críticos e regentes, que teimam não reconhecer sua profundidade. Rachmaninov, no entanto, a considerava a sua melhor obra; ela é concentrada, comedida em suas pulsões românticas, admiravelmente orquestrada, a Terceira Sinfonia exige uma orquestra virtuose, onde cada músico precisa demonstrar capacidades de solista.
A Orquestra Jovem do Estado mostrou perfeitamente ser essa orquestra virtuose. Seus componentes, a começar pelo jovem Daniel Maldonado, spalla, foram todos muito solicitados. Desde o spalla até todos os demais integrantes, cada músico foi colocado à prova. É justo destacar que, embora um nome seja mencionado, o reconhecimento deve se estender a todos os membros da orquestra, que demonstraram excelência coletiva.
Cláudio Cruz fez da OJE uma orquestra que está entre as primeiríssimas de nosso país, capaz de se apresentar em qualquer palco do mundo sem receio de comparações. Notável maestro, notável orquestra
Para que a Terceira sinfonia de Rachmaninoff alcance sua beleza singular, o regente deve evitar tanto a excessiva ênfase no romantismo opulento, comum em outras obras do compositor, mas ausente aqui, quanto uma abordagem excessivamente cerebral, que poderia distanciá-la de sua essência.
Cláudio Cruz demonstrou ser o regente ideal para essa tarefa. Seus gestos contidos e elegantes se transmitem com precisão a seus músicos, resultando em uma beleza requintada, na qual o interesse nunca esmorece.
Cláudio Cruz está em sua décima-quarta temporada frente à Orquestra Jovem do Estado. Fez dela uma orquestra que está entre as primeiríssimas de nosso país, capaz de se apresentar em qualquer palco do mundo sem receio de comparações. Notável maestro, notável orquestra.
Um ponto, no entanto, merece atenção. Não encontrei programa impresso, nem foi fácil descobrir on-line referências à apresentação. Os nomes das solistas no concerto de Glass, por exemplo, só pude localizar no Site CONCERTO e no portal do Santa Marcelina Cultura, instituição à qual a orquestra está vinculada. Não havia QR Codes ou outras formas de acesso ao programa. É provável que muitos na plateia não soubessem exatamente o que estavam ouvindo. Em uma programação tão elaborada, um texto explicativo, mesmo que breve, seria de grande utilidade, assim como a listagem dos integrantes da orquestra. Esses detalhes contribuiriam para uma experiência mais informativa e completa para o público.
Isso, porém, tem muito menos importância do que a esplêndida realização artística com a qual a Orquestra Jovem do Estado e o maestro Cláudio Cruz presentearam o público no domingo. Eles vieram com a promessa de uma temporada 2025 com alta qualidade e inovação, e essa abertura deixou claro que estão à altura das expectativas. O concerto não apenas confirmou o talento e a maturidade da orquestra, mas também reforçou a importância de investir em jovens músicos e em novos e inspiradores repertórios. Decididamente, futuro da música clássica está em boas mãos.
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