Miopia tecnocrática e disputa política detonam projeto musical histórico em Novo Hamburgo

por Nelson Rubens Kunze 20/03/2025

Prefeito Gustavo Finck decreta estado de calamidade financeira e extingue Orquestra de Sopros da cidade

A Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, fundada em 1952 pelo maestro Arlindo Ruggeri, é uma das formações musicais mais antigas do Brasil. Reconhecida como patrimônio histórico, artístico e cultural de Novo Hamburgo, ela é uma das principais referências históricas da música clássica em nosso país. Ou melhor, era! Pois na sexta-feira passada a Prefeitura comunicou o corte total do repasse anual que mantém a orquestra (clique aqui para ler a notícia).

É que a Prefeitura de Novo Hamburgo decretou “estado de calamidade financeira” no município. A decisão foi comunicada em coletiva de imprensa pelo prefeito Gustavo Finck (PP), acompanhado pela secretária da Fazenda, Michele Antonello, a secretária de Gestão, Governança e Desburocratização, Andrea Schneider Pascoal, e o procurador-geral Vanir de Mattos. Segundo informações do site da Prefeitura, “a medida se dá em razão das dívidas acumuladas ainda no ano passado que superam o valor de R$ 200 milhões”. 

A suposta crise financeira ganhou ares de disputa política quando a prefeita da gestão anterior, Fátima Daudt (ex-PSDB e atual MDB), em entrevista à Rádio Gaúcha publicada no Jornal Zero Hora, afirmou que “todas as contas foram pagas”. “O que está sendo dito precisa ser comprovado [...] Este número que foi jogado [R$ 200 milhões], ele precisa ser dito de onde saiu, porque eu também quero saber de onde saiu esse número absurdo. Não é só dizer que tem um déficit de tantos milhões e não comprovar.” 

Com o decreto do estado de calamidade financeira, o prefeito ganha poderes para enfrentar a crise anunciada. Entre as principais medidas estão o bloqueio de 25% de todo o orçamento e a possibilidade de renegociação dos débitos direto com os fornecedores. 

Se evidentemente o equilíbrio financeiro é fundamental – e especialmente na esfera pública! –, o anúncio do estado de calamidade financeira ecoou a disputa política e certa dose de demagogia. O comunicado publicado no site da Prefeitura fala em “dívida milionária”, “enfrentamento da crise fiscal”, “rombo nas contas do Município”, acessos contábeis não fornecidos durante a transição e de dívidas que foram geradas por serviços sem empenho. Além disso, apresenta passos já dados para a contenção da crise como “cortes de despesas já implementados” e “medidas para aumentar a arrecadação sem aumentar impostos”.

É um discurso tecnocrático de forte viés liberal. E é um discurso míope, pois não enxerga a função do estado justamente em áreas que não têm o apelo do mercado – cultura, educação, saúde, promoção social, meio ambiente e por aí vai.

Ato contínuo, uma das primeiras medidas adotadas pela Prefeitura foi a extinção da Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo. A orquestra e três polos do Núcleo de Orquestras Jovens são mantidos pelo Instituto Arlindo Ruggeri por meio de um termo de parceria com a Prefeitura, que prevê um repasse anual no valor de R$ 1,2 milhão. E esse repasse foi agora sumariamente cancelado.

A decisão da extinção da orquestra é um enorme equívoco. A Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo, além de sua atuação para a difusão da música na região, faz parte de um sistema pedagógico de formação musical. Por meio de orquestras jovens, dezenas de estudantes têm acesso gratuito a aulas de instrumentos como violino, violoncelo, contrabaixo e instrumentos de sopro. E música, como está comprovado em inúmeros estudos, é ferramenta para socialização, reforço de autoestima, crescimento de autoconfiança, desenvolvimento da memória e da concentração, música desperta a criatividade e promove a sensibilidade e afetividade. Portanto, a manutenção do financiamento não é um mero capricho estético ou elitista, é uma necessidade intrínseca ao bem-estar do tecido social da comunidade de Novo Hamburgo, é um investimento no futuro. E é um investimento econômico!

É importante chamar a atenção, também, para um fato concreto que foge à compreensão: por que um decreto de calamidade financeira que decide pelo bloqueio de 25% do orçamento leva sumariamente a cortar toda a verba para a manutenção da orquestra? Ora, 25% não é 100%! Autoridades de bom senso e movidas por ações construtivas sentariam à mesa para comunicar um corte de 25%, ou R$ 300 milhões. Já seria um desastre... mas ainda daria para argumentar pelo lado da responsabilidade financeira.

No comunicado sobre a extinção da orquestra que a Prefeitura publicou em seu site, lê-se que “o Executivo está à disposição para auxiliar a OSNH na captação de recursos junto à iniciativa privada”. Essa é outra manobra amplamente usada pelos governos para reduzir ou cortar recursos para a manutenção e funcionamento de órgãos culturais. O que significa “estar à disposição para auxiliar”? É o contrário! Se o governo não tem recursos próprios para bancar os órgãos culturais de sua cidade, que busque ele os recursos junto à iniciativa privada e as organizações sociais “estarão à disposição” para viabilizar isso.

Eu já conhecia a Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo, mas nunca visitei a cidade. Novo Hamburgo tem aproximadamente 220 mil habitantes e um IDH - Índice de Desenvolvimento Humano de 0,747, que está na faixa “alto” (tenho certeza de que o trabalho com a música contribui para isso, já que um dos parâmetros do IDH é a educação).

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o PIB de Novo Hamburgo foi de R$ 10,037 bilhões em 2021 (último dado disponível). E de acordo com a Lei Orçamentária Anual de Novo Hamburgo para 2025, a secretaria de Cultura receberá R$ 31,5 milhões, representando cerca 1,6% do orçamento total de R$ 2 bilhões (é uma boa taxa, creio que poucas cidades no Brasil alcançam este índice – São Paulo não chega a 1%).

Temos no Brasil uma legislação específica, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que estabelece limites para a dívida pública dos municípios e estados. Pelo que pesquisei – economistas me corrijam! – não há um limite específico de dívida municipal atrelado diretamente ao PIB, mas como referência, cidades financeiramente saudáveis geralmente mantêm sua dívida pública abaixo de 10% do PIB municipal. Portanto, se o PIB de Novo Hamburgo é de R$ 10 bilhões, sua dívida começaria a preocupar se ultrapassasse R$ 1 bilhão. Pelo que o prefeito afirma, ela está em R$ 200 milhões. 

Talvez seja realmente muito. E sei que há também a relação da dívida com as receitas líquidas e o comprometimento com despesas fixas, que devem levar à necessidade de cortes e contenção de gastos.

Mas, certamente, tudo isso não justifica o sacrifício de um projeto histórico que leva cultura e humanidade para a população de Novo Hamburgo (por um custo bem baixo). 

Não se fecha orquestras, não se fecha escolas, não se fecha museus, não se fecha bibliotecas, não se fecha teatros. E esta não é uma questão ideológica, já que infelizmente há exemplos que vão da esquerda à direita. Não creio que as autoridades de Novo Hamburgo queiram entrar na lista e manchar o currículo com a extinção de um dos principais patrimônios culturais da cidade.

Torçamos para que o prefeito e sua equipe encontrem outras saídas para debelar a crise e voltem atrás na decisão de extinção da Orquestra de Sopros de Novo Hamburgo. Seria, aí sim, uma ação de responsabilidade econômica, social e política a ser comemorada!

Prefeito Gustavo Finck de Nova Hamburgo assina decreto de calamidade financeira (divulgação, PMNH, Débora Ertel)
Prefeito Gustavo Finck de Novo Hamburgo assina decreto de calamidade financeira (divulgação, PMNH, Débora Ertel)

 

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