Três Edinos, uma só paixão pela música brasileira

por João Luiz Sampaio 07/12/2022

Como compositor, crítico musical e gestor, Edino Krieger batalhou pelo espaço para a música de autores do país

Morreu Edino Krieger. Nascido em Brusque, em Santa Catarina, lá começou os estudos de violino com o pai Aldo Krieger. Aos 14 anos, fez o primeiro recital em Florianópolis e recebeu uma bolsa do governo do estado para seguir em direção ao Rio de Janeiro. No Conservatório Brasileiro de Música, na época dirigido por Lorenzo Fernandez, manteve as aulas do instrumento, mas certo dia, passando por um corredor, reconheceu a figura de Hans Joachim Koellreutter. Como o próprio Edino se lembraria décadas mais tarde, criou coragem para abordá-lo. E perguntou se poderia participar de seu curso de composição.

Em depoimento reproduzido no livro Edino Krieger: compositor, produtor musical e crítico, de Ermelinda A. Paz (Edições Sesc), Krieger lembrou-se do método empregado por Koellreutter. “No entendimento dele, você tem, potencialmente, condições de criar a partir do momento em que você tem os conhecimentos básicos mínimos. O aluno deve ser estimulado a criar com os recursos e conhecimentos que ele tem, não importa que eles sejam ou não completos. A didática do Koellreutter é que ele ensina tudo simultaneamente. À medida que você vai adquirindo conhecimentos, você vai aplicando esses conhecimentos teóricos na prática da criação. Você vai sendo estimulado a criar com aqueles elementos que você tem. Ele fazia um ensino de música globalizado, ele não dividia as matérias em disciplinas, ele fazia tudo de forma integrada.”

Koellreutter e Lorenzo Fernandez se desentenderam a certa altura e o curso livre oferecido no conservatório foi extinto. Mas Krieger acompanhou o compositor em outras empreitadas e por meio dele conheceu diversos outros autores, como Guerra-Peixe, Eunice Katunda, Esther Scliar, Lindolfo Gaia, Claudio Santoro, em torno dos quais surgiria o movimento Música Viva. O flerte com o dodecafonismo não durou muito tempo, mas Koellreutter chamaria atenção para a postura do compositor na época da publicação da Carta Aberta aos Músicos do Brasil, em que o grupo nacionalista liderado por Camargo Guarnieri se colocava contra a corrente estética seguida pelo Música Viva. “Ele sempre manteve uma postura correta, objetiva.”

No final dos anos 1940, Edino Krieger mudou-se para os Estados Unidos, onde estudou com Aaron Copland e Darius Milhaud, em Tanglewood (na chegada ao país, foi levado para a Ilha Ellis, onde imigrantes ilegais eram mantidos e só foi solto após a intervenção dos professores). Logo depois, estudou com Peter Mennin na Juilliard School of Music, em Nova York.

 

“De volta ao Brasil, Krieger aderiu ao estilo neoclássico e de recorte nacionalista que vira nos Estados Unidos, mas com sobriedade e equilíbrio que nem sempre se notavam na ruidosa produção americana, escrevendo peças de sucesso, como a singela Sonatina (1957), para piano solo, e o Quarteto de cordas nº 1 (1956). Teve ainda um período de aprimoramento na Royal Academy, em Londres, com Lennox Berkeley”, escreve Irineu Franco Perpetuo em sua História concisa da música clássica brasileira, lançada pela Alameda Editorial.

Perpetuo segue em sua síntese da obra do autor. “Na década de 1960, Edino entrou em sua fase mais interessante, incorporando elementos da vanguarda europeia, como o serialismo. Deste período são Ludus Symphonicus (1965), obra estreada em Caracas pela Orquestra da Filadélfia, regida por Stanislaw Skrowaczewski; o belíssimo Canticum Naturale (1972), de inclinação polonesa, para soprano e orquestra; a empolgante Ritmata (1975), para violão solo; e o Estro Armônico (1975), para orquestra”, anota o jornalista e crítico musical.

 

O próprio Krieger definiria esse período como um conjunto de experimentos que levaria ao que chamaria de síntese, símbolo do que Luiz Paulo Horta colocaria como uma liberdade perante “injunções de épocas ou de estilos”. Os rótulos, diria Krieger, completando a ideia, “importam menos que a substância musical”, tema que abordou em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 1998, por conta de seus 70 anos.  

"Chegamos a um consenso que música contemporânea é a música que se faz hoje. É um conceito meramente cronológico, e não de natureza estética, ou uma definição excludente. Portanto, a música tradicional é música contemporânea, se for feita hoje. Não é o caráter da obra que a define como contemporânea. A característica principal da nossa cultura, inclusive na área da música, é exatamente a diversidade, a pluralidade. Esse pluralismo é que é conceitual. Se a música contemporânea soa como de vanguarda, nacionalista, tradicional ou de pesquisa, isso não importa. Cada compositor é que escolhe sua vertente”, disse ao jornalista Carlos Bozzo Júnior.

No precioso depoimento a Ermelinda A. Paz, Krieger explicou como se dava o seu processo de criação, que ele definia em dois momentos distintos:

“Um é de fora para dentro, quer dizer, de você ir adquirindo informações, ir fazendo o seu aprendizado de como lidar com a matéria sonora, como transferir o que é ideia para um registro que é feito de código, gráficos. Você pensa uma coisa, depois tem que transformar uma ideia sonora, que é uma coisa abstrata, num símbolo gráfico. E, dentro desse processo, você vai adquirindo informações, vai aprendendo com aquilo que ouve, com o que estuda, com as partituras que analisa. É um tempo de aprendizado, de assimilação. Até que chega um momento em que você já tem um certo domínio, a mão começa a trabalhar com mais facilidade, então você realmente pode dizer que começa a inverter o processo, e começa então a fazer com que o processo nasça interiormente. É um processo de retorno daquilo que você aprendeu e então passa a utilizar. E esse processo amadurece no momento em que você já não tem mais a preocupação técnica em relação a ele. Em algumas músicas a gente vê ainda o ranço do aprendizado, percebe ainda uma certa briga de ideias com os meios.”

 

Em entrevista concedida em 2018 à Revista CONCERTO, Edino Krieger definiu a composição como um trabalho marginal em sua trajetória. “Sempre foi algo que eu fazia nas horas vagas. Desde 1950, tenho dois, três empregos. Sobrava pouco tempo para escrever. Felizmente, tive muitos estímulos, solicitações, encomendas a atender”, disse. O fato é que, nesses “dois, três empregos”, ele desempenhou um papel único e fundamental na promoção da música brasileira e no espaço para seus autores, em diferentes áreas de ocupação.

Primeiro, podemos falar de seu trabalho como crítico musical. Sua produção, publicada ao longo de vários anos em jornais do Rio de Janeiro, foi recentemente reunida em livro, Textos e Contextos, publicado pela Academia Brasileira de Música. Lê-se como um retrato vigoroso da vida musical do Rio de Janeiro, em especial pela atenção à música brasileira, mas não só: seus comentários a respeito de recitais e concertos de artistas brasileiros e internacionais mostram um olhar instigante sobre o fazer musical, em que o conhecimento da técnica jamais era um fim em si mesmo, em análises que visavam acima de tudo o diálogo com o leitor. 

E há o Edino Krieger produtor e gestor cultural. Ele dirigiu a Fundação de Teatros do Rio de Janeiro, foi presidente da Funarte, da Fundação Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e da Academia Brasileira de Música. Em 1969 e 1970, organizou e dirigiu o Festival de Música da Guanabara, do qual se originou, a partir de 1975, a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, que segue tendo importância decisiva em nosso cenário musical. Sobre o tema, ele falou à CONCERTO em 2018: “Tentei fazer algo pela música brasileira, que tem uma história admirável desde o período colonial.” Tentou e conseguiu. 

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O compositor Edino Krieger [Reprodução]
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