Era um início de noite fresco, no outono carioca de 2006. Na varanda de um bar no Flamengo, bairro de classe média, numa mesinha rente à calçada, conversavam dois animados senhores com jeito de estrangeiros. Um tomava chope – o mais baixinho e redondo. O outro, alto, espigado, sorvia uma caipirinha. Nada demais, não fossem as duas moças atentas à conversa – e maravilhadas por testemunhar o papo. Uma delas, a que vos escreve; outra, a jovem e ótima repórter do Jornal do Brasil Monique Cardoso.
Ninguém diria que ali estavam duas potências da música de concerto do século XX, descontraidamente trocando impressões e contando histórias. O do chope era o polonês Krysztof Penderecki; o alto, nosso catarinense Edino Krieger. A conversa havia sido uma ideia do próprio visitante, que voltava ao Brasil para reger a Orquestra Petrobras Sinfônica. Penderecki reencontrava Edino depois de 37 anos da primeira vinda. justamente a convite do brasileiro, para participar da primeira Bienal de Música Contemporânea.
O evento, pioneiro e de continuidade, é uma das muitas, quase incontáveis contribuições de Krieger para a música no Brasil, numa trajetória que foi marcada pela mistura sempre intensa de talento, dedicação, criatividade, persistência, diplomacia.
Talvez “intensa” não seja a palavra exata, exatamente porque sugere tensão. E o fato é que não existia tensão emanando de Edino. Ele era, sempre, gentil, delicado e afetuoso. Firme, sem dúvida. Um líder inconteste. Raríssimos conseguem a proeza de, ao mesmo tempo, criar com genialidade e administrar com competência. Esses talentos são em geral paradoxais. Pois ele tinha os dois.
Nessa combinação, Edino esteve à frente de instituições como a Funarte, a Sala Cecilia Meireles, a Rádio MEC, a Rádio Jornal do Brasil, Academia Brasileira de Música; criou eventos, grupos sinfônicos, festivais, projetos de preservação e restauração de partituras; gestou estratégias para apoiar a música em muitas direções e linguagens, das bandas modestas do interior a mobilizações político-culturais de caráter nacional.
Era casado com a jornalista e produtora Neném, outra força de afeto e competência na música de concerto; os três filhos – Eduardo, Fabiano e Fernando – se envolveram inevitavelmente com a música, como criadores, produtores, estudiosos. Ele viveu, digeriu e traduziu as grandes transformações da arte no século XX, a vanguarda inicial, os retornos de linguagem – neoclássico, nacionalismo –, as novas versões dos desafios à tonalidade, serialismo, o cross-over no envolvimento com a música popular e os festivais da canção, as trilhas de cinema, balés. A lista é imensa e felizmente sua obra está bastante disponível.
E “tradução” incluiu também a dificílima arte de exercer a crítica entre os pares, com a fabulosa capacidade de orientar, contextualizar e dar sentido. A coleção de seus textos publicados na Tribuna da Imprensa e no Jornal do Brasil vale por um compêndio, no registro comentado da vida musical no Rio de Janeiro – então capital do país e, mesmo depois de 1960, um polo de performances e iniciativas históricas na música. Os dois volumes escritos por Ermelinda Paz e publicados pelo Sesc em 2012 são um precioso guia da carreira de Edino.
É deste livro que retiro trechos do depoimento de outro imenso criador brasileiro, Almeida Prado. “...um compositor maior, de altíssima personalidade, inconfundível, com uma obra que tem a qualidade maior da comunicação com o público. Edino não é um compositor hermético, ele é supersofisticado, se utiliza das técnicas mais avançadas da música contemporânea. Mas quando você ouve, não sente o esforço, tudo flui naturalmente como Mozart. Essa simplicidade da escrita com alta sofisticação de feitura é genial; não passa o peso e a dificuldade que o compositor tem ao criar uma obra. O ouvinte viaja na música dele. Ele pode se permitir tudo porque está numa altíssima maturidade.”
Pois então: o Brasil perdeu nessa terça-feira esse criador sofisticado e genialmente simples, como diz Almeida Prado, na mesma medida; um realizador titânico e incansável, mantendo a postura modesta e o olhar para o coletivo. Dos muitos alunos, parceiros, pupilos, assistentes se ouvirá que Edino abriu todas as portas e deu todas as ferramentas sem qualquer vaidade ou temor de ser superado.
Edino é tudo isso. E será sempre aquele suave gigante tomando caipirinha com Penderecki, os dois gênios e realizadores trocando risadas numa noitinha carioca, enquanto as crianças voltam da escola e os homens pegam condução numa rua do Flamengo. A arte maior e a vida comum, abraçadas na mais nobre das realidades humanas, a do afeto.
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