Josy Santos: excelência técnica e musicalidade

Durante muitos anos, para um artista brasileiro aparecer em uma série de concertos internacional em nosso país, ele tinha que se chamar Nelson Freire – ou Antonio Meneses. Por isso, não há como não festejar a decisão do Mozarteum Brasileiro de, na última terça-feira, dia 2, no Teatro B32, em São Paulo, abrir sua temporada 2024 com a jovem mezzo-soprano baiana radicada na Alemanha Josy Santos.

Não, ela não era coadjuvante – nem estava substituindo ninguém que cancelou de última hora. Para dar uma dimensão do fato: apenas no campo da voz, ela foi programada na mesma série que, neste ano, traz ao Brasil ninguém menos do que Diana Damrau. E que, em temporadas anteriores, presenteou-nos com nomes como Bryn Terfel, Elina Garanca, Anna Netrebko e Jonas Kaufmann, dentre outros.

Josy aproveitou a ocasião para montar não um programa de fácil apelo, com diversas árias de ópera, mas sim uma coerente e bem pensada Liederabend – algo infelizmente bastante raro por aqui.

Depois de sua refinadíssima Dorabella na montagem de 2023 de Così fan tutte, de Mozart, no Theatro Municipal de São Paulo, a expectativa em torno do desempenho de Santos não era pequena. E foi plenamente superada. Anuncia-se uma master class da cantora nessa quinta-feira, dia 4, pela manhã, na Escola Municipal de Música. Mas verdadeira master class aconteceu já na antevéspera, no palco do B32.

Quando ela abriu a boca para entoar Mein Lied ertönt, primeira das sete Canções Ciganas (ciclo cujo item mais célebre é o quarto, Als die alte Mutter) de Dvorák, deu para sentir que algo de muito especial estava para ocorrer. Josy possuiu um domínio absoluto de seu instrumento, moldando o fraseado como deseja, e colocando as mais diversas gradações e sutilezas de dinâmica a serviço das intenções expressivas. Seu alemão não é apenas perfeito, como idiomático; e a claríssima articulação do texto não quebra o legato das linhas melódicas belamente construídas. Como se não bastasse, a voz, embora leve e clara, possui projeção e ressonância no registro grave.

Tudo isso contribuiu para uma interpretação não menos do que inesquecível dos cinco Rückert-Lieder, de Mahler (peça que tem uma bela versão com orquestra. Será que nenhuma de nossas sinfônicas se anima a convidar Santos a cantá-las?). Sem nenhum trejeito ou maneirismo operístico, Josy tratou cada um deles como um mundo à parte, sabendo caracterizá-los de forma distinta. Quem não ficou com o coração dilacerado após o último e mais célebre, Ich bin der Welt abhanden gekommen, pode fazer exame cardíaco, pois certamente está com um vácuo no lugar que deveria abrigar nosso órgão vital.

Daí veio o intervalo, e confesso que tive impulsos de voltar para casa. Não porque o concerto não estivesse bom, mas justamente por estar bom demais. Afinal, o que seria ainda possível ouvir depois  deste diálogo com a transcendência?

Fiz bem em ficar. Após uma metade europeia, Josy brindou-nos com uma segunda parte de programa totalmente sul-americana, aberta pela efeméride esquecida de 2024: os 160 anos do cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920).

Se Nepomuceno é tido como uma espécie de “pai” do lied em português, por sua veemente defesa do uso de nossa língua na canção “erudita”, ele foi também um cosmopolita que estudou em Roma, Paris, Viena e Berlim. Santos mostrou essa faceta internacional (e bem pouco difundida entre nós) do compositor ao cantar suas cinco canções em alemão sobre poemas de Nikolaus Lenau (1802-1850), um austríaco cujo Don Juan inspirou o poema sinfônico homônimo de Richard Strauss, enquanto seu Fausto deu origem a peças para piano de Liszt. Uma breve enciclopédia de variados afetos transmitidos com excelência pela intérprete.

E quem queria ouvir Josy cantando em português pôde se esbaldar com as deliciosas Cinco Canções Nordestinas, de Ernani Braga. Como é bom ouvir uma cantora que não trata nosso idioma como um problema, e que não soa como uma estrangeira de sotaque estropiado ao abordá-lo! A mezzo foi tão cativante em sua interpretação de Braga que o disciplinado público, que vinha reservando seus aplausos para o final de cada bloco de canções, não conseguiu resistir, e prorrompeu em palmas após a graciosa Capim de Pranta. Música brasileira tratada não como uma obrigação da qual é preciso se livrar da forma mais rápida possível, e sim com respeito, convicção e senso de estilo.

Para mostrar excelência em um terceiro idioma, Josy encerrou o recital com as saborosas Cinco Canções Populares Argentinas, de Alberto Ginastera – especialmente pertinentes em um momento em que o país vizinho ameaça dar às costas à sua cultura e identidade. Diante dos rogos de bis, fomos agraciados com a Melodia Sentimental, de Villa-Lobos – e o canto do cisne de nosso compositor maior embalou os sonhos dos espectadores na tépida noite de outono paulistana.

Nota destoante, apenas, o piano. E não por culpa de Markus Hadulla. Pelo contrário, o acompanhante revelou-se um verdadeiro taumaturgo, inventando legato à revelia do instrumento hostil, com sonoridade de lata, que foi colocado à sua disposição. Um espetáculo deste nível merecia um piano à altura. Não é possível que em São Paulo não exista instrumento de melhor qualidade.

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Markus Hadulla e Josy Santos durante recital no Teatro B32 [Divulgação/Ana Clara Miranda]
Markus Hadulla e Josy Santos durante recital no Teatro B32 [Divulgação/Ana Clara Miranda]

 

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