Histórias em diálogo no Festival Sesc Música de Câmara

 Violino, contrabaixo, clarinete, fagote, trompete, trombone, percussão, voz. A instrumentação da História do Soldado, de Igor Stravinsky, é a paleta de cores-sons dos sonhos de qualquer pintor-músico. 

O uso dessa combinação foi o fio condutor principal do concerto Outras Histórias, pensado pelo regente holandês Leonard Evers em colaboração com La Sociedad Boliviana de Música de Cámara. O programa circulou em São Paulo, Jundiaí e Sorocaba na última semana, durante o Festival Sesc Música de Câmara.

O ponto alto do programa foi a recriação de Silvia Berg e Denise Garcia das canções de Dinorá de Carvalho e Helza Camêu, originalmente escritas para voz e piano. Os arranjos, muito longe de serem meras transcrições, expressaram um verdadeiro diálogo entre essas quatro compositoras brasileiras.

O conjunto proposto por Silvia Berg, chamado Colloquium, traz arranjos expandidos de cinco canções de Dinorá de Carvalho. Como conta a compositora, trata-se de um diálogo hipotético com Dinorá. E esse diálogo se dá da maneira mais interessante em música: polifonicamente. A sobreposição de materiais diferentes conferiu ao arranjo das canções uma sonoridade toda nova, complexa, de fato dialética. Outras citações também aparecem: Le Cris de Paris (Os Pregões de Paris), do renascentista Clément Janequin, passa ao lado do pregão cantado em O Pipoqueiro, como a compositora aponta nas notas de programa. 

Pode-se imaginar que uma construção tão densa como a da composição de Berg se sobreporia à voz, mas não foi o caso. Vivaz, a interpretação da mezzo soprano Juliana Taino enriqueceu a instrumentação, incluindo a palavra neste grande colóquio. Sua ótima pronúncia trouxe para o primeiro plano o caráter dos textos, sem no entanto deixar de lado o equilíbrio das melodias cantadas em relação às linhas dos instrumentos. Uma verdadeira aula de música de câmara.

Denise Garcia trouxe outra proposta, dessa vez para as canções de Helza Camêu. O conjunto escolhido por ela contempla o obscuro expresso pela noite e pelas sombras. Os arranjos foram brilhantemente construídos na paleta camerística proposta: os diálogos, estabelecidos sobretudo entre os instrumentos de sopro e a voz de Juliana Taino, apareciam e desapareciam com sutileza, permanecendo sempre presente o som do contrabaixo. A sensação era de estar na bruma dita nos textos. 

As canções foram intercaladas por intervenções de percussão solo, que Garcia chamou de Quatro Paisagens. Criadas para expressar a passagem do dia, foram tocadas em posições diferentes no palco e trouxeram um matiz tímbrico que passou do mais agudo (triângulo e caixa clara) até o mais grave (bumbo sinfônico). As Quatro Paisagens foram muitíssimo bem interpretadas pela percussionista de La Sociedad Paola Machicado Torres, com destaque para o domínio dos envelopes dinâmicos em cada uma das intervenções. 

Na segunda parte do programa o público pôde ouvir O rouxinol, do compositor holandês Theo Loevendie. A obra tem como base um conto de Hans Christian Andersen. Na história, a relação entre um imperador chinês e um rouxinol, cujo canto é considerado o atributo mais bonito de todo o império, é prejudicada pela chegada de um rouxinol mecânico; ignorado por todos diante da novidade tecnológica, o rouxinol verdadeiro foge. Nesse ínterim, o rouxinol mecânico quebra, de maneira que só pode ser tocado raramente. Um ano depois, o rouxinol verdadeiro volta ao palácio para salvar o imperador, que tem a própria Morte já sentada sobre seu peito. O rouxinol canta e a Morte, comovida pela melodia, poupa o imperador e sai pela janela do palácio na forma de uma brisa gélida. 

O conto foi narrado em português pelo cantor Eduardo Janho-Abumrad. Seu entendimento do texto, perceptível desde a construção de cada frase até as chegadas e partidas de pontos culminantes do arco dramático, hipnotizou a plateia durante a peça toda.

A obra de Loevendie trabalha materiais musicais bem definidos que são repetidos e variados frequentemente em todos os instrumentos, sobretudo entre o clarinete e o trompete – o primeiro representa o rouxinol verdadeiro, enquanto o segundo faz o papel do rouxinol mecânico. De fato, o canto do rouxinol-clarinete, livre, de gestualidade veloz e imprevisível, contrasta com a linha melódica metronômica e repetitiva do rouxinol-trompete, embate muito bem interpretado por Camila Barrientos e Bruno Lourensetto.

Há também citações de sonoridades propriamente imperiais, como no caso da dupla trombone e trompete. A música, se fosse demasiado descritiva, seria monótona, mas não é. Carrega uma linguagem própria que tem mais função de acrescentar à narração do que apenas mimetizar o significado do texto o tempo todo. Novamente: uma aula de música de câmara de todos os músicos de La Sociedad e o maestro Leonard Evers, que, além de reger o concerto completo, trouxe a ideia para essa programação. 

O Festival Sesc Música de Câmara está em sua quinta edição. Sua curadoria tem se provado excelente, com programas originais que estimulam a escuta, promovem a encomenda de novas obras e proporcionam atividades educativas que trazem a invenção musical para mais perto do público. Em que outro lugar do Brasil encontramos um concerto como este? Em primeiro lugar, a criação de arranjos novíssimos de canções de compositoras brasileiras. Depois, a interpretação de uma obra que, arrisco dizer, muito provavelmente nunca foi tocada por aqui. A conexão? Todas as peças trazem a mesma formação da História do Soldado, de Igor Stravinsky, que foi executada ainda em outro programa do festival e, aliás, com uma narrativa completamente nova. Tudo isso realizado a partir do esforço conjunto de artistas nacionais e internacionais de altíssimo nível. Criatividade do ponto de vista curatorial, incentivo à composição brasileira e fomento à colaboração artística entre países, numa tacada só.

Músicos do grupo La Sociedad Boliviana, com a compositora Denise Garcia e a mezzo soprano Julilanna Taino [Reprodução/Facebook]
Músicos do grupo La Sociedad Boliviana, com a compositora Denise Garcia e a mezzo soprano Julilanna Taino [Reprodução/Facebook]

 

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Estive ao mesmo concerto ontem e compartilho das mesmas percepções de Ana Cursino. Incrível trabalho, muito refinado e bem construído. Espero acompanhar mais festivais promovidos pelo SESC e que sigam sendo comissionadas as nossas compositoras.

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