Gabriele Leite e um primeiro de abril de verdade

Violonista brasileira prepara-se para mudar para Nova York, onde fará mestrado na Manhattan School of Music

Por Lennon Strabelli

As artes, mais precisamente a música, sempre tiveram um poder incrível de unir pessoas. Seja para apreciar, tocar ou ensinar, a arte quase nunca é objeto de poucas pessoas. Não faz sentido relacioná-la com minorias. O que a arte não faz é deixar alguém de fora. Isso quem faz é o homem que rotula as minorias e as artes. O conteúdo artístico sofre com faixas de contenção limitadas por pessoas limitadas. Falando propriamente de música, além de se tratar de uma arte puramente presencial e momentânea, ela é comunitária, grupal e altruísta.

Para falar um pouco dessa força que a música possui e rompendo faixas de contenção dia após dia, a violonista Gabriele Leite nos oferece uma entrevista, contando sua trajetória, dificuldades e felicidades. De família humilde, filha de pai mecânico e mãe costureira, Gabriele se aventura no mundo da música desde os 7 anos de idade, quando ganhou seu primeiro violão. Hoje, formada na UNESP, com a titulação de Bacharel em Violão Erudito, a artista de Cerquilho, no interior de São Paulo, conquistou uma bolsa de estudos para um mestrado integral na Manhattan School of Music, em Nova Iorque. E falou, em entrevista, sobre sua trajetória – e seus planos para o futuro.

Gabriele Leite [Divulgação]
Gabriele Leite [Divulgação]

Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória na música.
Iniciei meus estudos musicais no Projeto Guri. De lá eu ingressei no Conservatório de Tatuí no Curso de Violão Erudito e em seguida passei no vestibular em Música da Unesp.

Quais participações e títulos em concursos você carrega em sua carreira?
Desde os meus 12 anos, eu participo de concursos na cidade de São Paulo. Em todos eles, obtive a primeira colocação e mais recentemente, em 2018, fui vencedora de três importantes concursos do Brasil. O primeiro deles foi O AssoVios Vertentes; e, em seguida, o Musicalis, em São Paulo, e o Souza Lima. Tudo isso em quinze dias! Eu participei de diversos festivais. Na Alemanha, em 2019, participei do meu concurso internacional, o Concurso de Koblenz e fui semifinalista, além de ganhar o prêmio de Melhor Participação Brasileira no concurso e no festival. 

Você se prepara para morar em Nova York, onde fará mestrado com bolsa integral na prestigiada Manhattan School of Music. Pode nos contar um pouco do que você espera dessa empreitada e se, mesmo nesse período de isolamento, alguma atividade está sendo realizada entre a escola e você.
Contando um pouco do processo para o mestrado: eu o iniciei em dezembro de 2019, logo depois que terminei o curso na Unesp. Você tinha opções, podia ir lá fazer a audição ou mandar vídeos. Como eu não tinha grana para ir até Nova Iorque, escolhi a opção de mandar as gravações. Foi mais como um teste, eu não esperava passar porque é super concorrido. Mas mandei os vídeos e fiquei sabendo que os professores amaram quando eles viram! Porque eles entraram em contato com o meu professor aqui do Brasil, Paulo Martelli, e falaram assim: “Poxa, a gente ficou muito encantado com a sua aluna que mandou os vídeos para o processo, espero que ela possa vir pra cá fazer aulas”. O Paulo me contou isso e então pensei: “Ah, não sei se realmente fui aprovada, se fui selecionada, porque é um processo que vai para outros professores.” E aí, no dia primeiro de abril, eu recebi a notícia de que havia passado num mestrado com uma super bolsa no valor do curso e fiquei super feliz, porque realmente é tudo muito caro, né? E agora, eu fui selecionada para fazer o Curso de Inglês de Verão dentro da universidade, então se não estivesse acontecendo a pandemia era para eu já estar lá vivendo no campus, tendo as aulas de inglês e conhecendo mais sobre a cultura.

Qual a importância dos projetos culturais na sua formação?
Tudo isso só foi possível muito por conta de todos os projetos que eu passei durante a vida. O Projeto Guri, que foi a porta de entrada pra conhecer o violão, pra saber o que era a música. O Conservatório, que já me deu mais noção do que seria a carreira, como é que você se profissionaliza, o que você precisa aprender. E aí, quando cheguei na Unesp, foi aquela coisa de: a gente tem tudo isso estruturado e agora a gente vai cada vez mais se aprofundar. Na universidade eu tive contato com um tipo de violão mais “formal”, né? Essa coisa da pesquisa, de buscar repertório, gravação, muito importante.

“A gente é minoria dentro do universo do violão, talvez da música, mas como população geral a gente não é minoria, de forma alguma!”

Você pode ser vista como uma representação de uma minoria. Musicista, negra e mulher. Como você se vê nesse cenário?
Na verdade, eu diria que a gente é minoria dentro do universo do violão, talvez da música, mas como população geral a gente não é minoria, de forma alguma! A gente precisa dar mais acesso. Existem diversos projetos sociais, porém é uma ou duas que prosseguem. Aquela frase que não gosto: “Ah, a preta que deu certo, o preto que deu certo”. A gente precisa ter mais dos nossos nos lugares. O como eu me vejo é o como eu posso ajudar a trazer mais pessoas, como eu, para tocar violão. Para ter mais mulheres pretas tocando violão clássico ou inseridas na música clássica. Como é que a gente faz para ter mais pessoas nesses lugares de inserção? Eu vejo que no mundo da música clássica isso é super barreira. As pessoas não comentam sobre isso, passam pano branco. A gente já evoluiu bastante. Poxa, se você pensar, há 20 anos atrás a gente não falava com tanta frequência sobre isso. Mas se você parar pra pensar sobre os últimos autores que você leu, ou o que você tá pretendendo ler, você está lendo autores pretos, autoras pretas, então é muito legal a gente estar começando a falar mais, né? Abrindo o espaço para conversar. Isso é importante e para todo mundo. Entender esse lugar de privilégio que a gente tem, por exemplo, eu no meu lugar de privilégio, onde posso ajudar a ter mais pessoas? Qual o meu papel? Eu não descobri ainda, eu vou descobrir e a vida está aí para a gente entender essas questões.

“Música não é uma coisa barata. Você precisa ter um professor bom, precisa ter um instrumento bom, tem que ter aula boa. Os projetos sociais são maravilhosos porque abrem essas portas”

Lembro-me de você comentar sobre uma experiência na Europa, na qual alguns músicos dirigiam comentários reducionistas sobre o músico brasileiro. Você poderia comentar sobre isso e a sua experiência pelo continente?
Quando eu fui para a Alemanha, percebi muito nos professores esse lance de: “ah, somos brasileiros e não sabemos das coisas, somos inferiores a eles”. Bom, se a gente pensar na história do mundo, em todas essas colonizações que aconteceram, não era de se esperar menos quando eu fosse para lá. Mesmo muitos anos depois e de muita coisa ter mudado, ainda é uma coisa super enraizada. Eu já esperava isso. No Brasil, não é muito diferente se você pensar nas classes sociais. Às vezes você está num espaço que é super elitista e você pensa: “eu não teria acesso a isso se não fosse pela música”. Música não é uma coisa barata. Você precisa ter um professor bom, precisa ter um instrumento bom, tem que ter aula boa e você tem que fazer outros investimentos, como um curso de língua. Minha família não teve condições de pagar isso durante minha adolescência, só depois eu fui aprender uma nova língua. Os projetos sociais são maravilhosos porque abrem essas portas, mas às vezes é difícil você se manter. Isso se reflete quando você vai para fora e vai tocar no concurso e a galera fala: ah mas é brasileiro, estuda no brasil, não tem todo suporte e etc.

Teria algum conselho para quem está começando seus estudos?
Eu diria que é sempre persistir. Persista muito. Não pense que na primeira dificuldade você vai desistir. Não! O mundo da música é difícil, mas a gente vem tendo mais aberturas e melhorias. Eu acho que o mais importante é você pensar que vai dar certo mesmo que todas as portas estejam fechadas. Persistir, ser insistente, ser dedicado, ter muita paciência porque esse processo leva anos, parece que nunca chega.

Quais os planos para o futuro? 
Primeiramente conseguir ir pra Nova Iorque (risos), fazer o mestrado e conseguir fazer um doutorado também fora do país. Não sei se na própria Manhattan ou em outra instituição, país, mas dar continuidade à atividade acadêmica. Participar de muitos festivais, porque os contatos são muito importantes nas nossas vidas. Quanto mais você conversa e troca ideias com as pessoas, mais elas vão saber de você e poderão te ajudar em questões que você nem imaginava que tinha.

 

Lennon Strabelli é maestro e professor, possui um canal no YouTube e um blog sobre teoria musical.. Este texto foi produzido durante o workshop de Jornalismo cultural e crítica de arte realizado pelo Sesc SP, sob orientação do professor e jornalista João Luiz Sampaio. 

Leia mais
Crítica
A amálgama de linguagens de Jocy de Oliveira, por Ana Cursino Guariglia
Reportagem Um meio musical em busca da diversidade, por Larissa Mariano
Crítica As auroras de Almeida Prado, por Danilo Ávila
Notícias Site CONCERTO publica textos produzidos no curso ‘Jornalismo cultural e a crítica de artes no Brasil’
 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.