Em seu primeiro concerto no Teatro Cultura Artística, pianista renunciou ao piano-espetáculo para trazer para nossos ouvidos um Chopin que deve se parecer muito com o que o próprio compositor praticava
Mais recatada do que de costume, a pianista chinesa Yuja Wang usou vestidos relativamente discretos no primeiro de quatro concertos no Teatro Cultura Artística, ao lado da Mahler Chamber Orchestra. Na primeira parte, um imaculado vestido branco, perfeito para o piano à Chopin; e na segunda, um vermelho próprio para os arroubos vertiginosos do Concerto nº 1 de Tchaikovsky.
Aos 38 anos, ela é a mais perfeita personificação das grandes divas da música clássica atual. A palavra “Diva”, sei, aplica-se às sopranos líricas; mas Yuja merece a comparação. Pianista absolutamente completa, toca com a facilidade e espontaneidade dos maiores ao longo da história.
De certo modo, os dois vestidos – que chamei acima de recatados, mas só em relação aos ousadíssimos modelitos que usava dez, quinze anos atrás – personificaram as duas partes do concerto. Na primeira, a Abertura Coriolano de Beethoven e o segundo concerto de Chopin; na segunda, um Stravinsky irrequieto, sempre interessantíssimo, e um “big hit” de Tchaikovsky.
Entre o branco e o vermelho, fico com o branco. A primeira parte foi um daqueles momentos inesquecíveis, que ficarão para sempre na memória do público que lotou o novo e acolhedor Cultura Artística. A Orquestra de Câmara Mahler, que atua sem regente, construiu uma interpretação ao mesmo tempo precisa e sanguínea, como exige esta pequena obra-prima de Beethoven: 9 minutos preciosos. Nenhum deslize, nada fora do lugar.
Depois da entrada triunfal da pianista, o que se viu e ouviu foi algo para não esquecer. Uma “diva” do piano mergulhando no mundo sensível, discreto mesmo, de Chopin. Renunciou ao piano-espetáculo para trazer para nossos ouvidos um Chopin que deve se parecer muito com o que o próprio compositor praticava. Ou seja, um piano tocado sem esforço, de modo a esconder sua condição de instrumento de percussão. Um piano que “canta”.
“Sob seus dedos”, seu aluno Karol Mikuli registrou em seu caderno ao ouvi-lo tocando em aula na Paris da década de 1830, “cada frase musical soa como um canto, com tal clareza que cada nota adquire o significado de uma sílaba, cada compasso o de uma palavra, cada frase o de um pensamento. Foi uma declamação alheia a qualquer pathos, ao mesmo tempo simples e nobre”.
Quando um de seus alunos não conseguia “cantar com os dedos”, ele o obrigava a estudar canto. Não tenho nenhum receio de afirmar que, ao menos no primeiro destes quatro concertos em São Paulo, Yuja conseguiu tudo isso. Sem esforço, como queria Chopin. “Cantando” suavemente e com expressividade cada uma de suas longas melodias tão avizinhadas das árias de seu ídolo lírico Bellini, ela teve nesta orquestra excepcional o parceiro ideal. Isso aplica-se tanto à interpretação do incrível Larghetto quanto ao Maestoso inicial e ao Allegro vivace final. É difícil, raro mesmo, uma superstar como Yuja deixar de lado seu ego para encarnar a estética tão particular de Chopin.
Diante de tudo isso, apesar de muito mais poderosa em termos de amplos e tonitroantes volumes sonoros, a segunda parte retornou ao mundo terreno de ótimas execuções porém previsíveis. Felizmente, Chopin retornou no extra, numa execução cheia de charme da conhecidíssima Valsa em dó sustenido menor, opus 64, nº 2. O público aplaudia a diva, e eu também, mas sobretudo por sua coragem de abrir mão de seu agigantado ego para curvar-se ao universo pianístico tão específico de Chopin.
![A pianista Yuja Wang [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-YujaWang600px.jpg)
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