Em novembro, nos dias 9, 10 e 11, acontece na Escola de Música da UFRJ, no Rio de Janeiro, a 19ª Semana do Cravo, evento concebido e coordenado pelo cravista, escritor e professor Marcelo Fagerlande. Desde sua criação em 2004, a Semana se constituiu como uma congregação de músicos e estudiosos do instrumento e do barroco e, ao mesmo tempo, por definição, um painel de divulgação do cravo, pouco compreendido fora do nicho de época.
Esse ano, o encontro celebra o retorno ao formato presencial depois da pandemia – quando aconteceu on-line – e também a perspectiva de um novo diapasão da cultura no Brasil, com mudanças no setor e na universidade, com a eleição de Lula. E aproveita o mote para celebrar o século XIX, período em que o cravo aparentemente desapareceu. Ou não, diz Fagerlande: “O cravo na verdade foi eclipsado, mas não desapareceu. Há uma série de circunstâncias que explicam o aparente sumiço do instrumento no século XIX. Um deles, a ascensão do piano, com seus recursos, preenchendo novos espaços amplos de salas de concerto”, diz. “No fim do século XVIII, a Revolução Francesa associou o cravo à aristocracia e colou nele um rótulo de passadismo. Mas havia quem se interessasse e se dedicasse ao cravo, inclusive no Brasil. Lembro que o primeiro instrumento de Verdi foi uma espineta. Bizet também tocava.” Marcelo cita inclusive Luigi Chiaffarelli, professor de Guiomar Novaes, que trazia o repertório do cravo em sessões de “concertos históricos”.
As mesas de debate se distribuem em torno deste tema, incluindo a presença do pianoforte, com o professor do Conservatório de Tatuí, Pedro Persone, e seus alunos; os professores João Vidal e Giulio Draghi: da UFRJ, eles vão apresentar a primeira tradução da História da Música no Brasil de Vincenzo Cernicchiaro, livro monumental de 1926 desse autor italiano novecentista, enfatizando o barroco; o regente Carlos Alberto Figueiredo apresenta uma pesquisa sobre o grupo Orfeu Carlos Gomes que, no século XIX, fazia coros de Bach no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro.
A Semana do Cravo 2022 escala ainda um tema especialmente interessante: as questões de gênero na música, do século XIX. “A professora Clara Albuquerque, por exemplo, vem pesquisando em seu doutorado as mulheres no Rio de Janeiro ao longo do século XIX”, conta Fagerlande.
"Falaremos sobre questões de raça, gênero e ensino de música. Acho interessante porque o cravo, sendo identificado com o conservadorismo, teve adeptos com comportamentos pessoais muito inconvencionais – a cravista polonesa Wanda Landowska, por exemplo, morava com duas mulheres; a inglesa Violet Gordon Woodhouse, com cinco homens. O cravo, portanto, não tinha nada a ver com o conservadorismo, pelo contrário. Era moderno. A volta do cravo no século XX está ligada a esses movimentos quase alternativos. E falaremos dos trans na música, na pesquisa de Beatriz Pavan, de Goiás. Independentemente do inusitado dessas abordagens, o que propomos é sempre a reflexão e a abertura de caminhos.”
Além das mesas, a Semana do Cravo também traz, como sempre, recitais de alunos e professores – esse ano, com a inclusão do fortepiano, especialmente trazido de Tatuí. “Trazemos jovens, brasileiros, interessados nesse instrumento tão especial”, afirma o coordenador. “Kenneth Gilbert, grande professor e pensador, dizia que o grande o inimigo é a indiferença do público e da crítica. Hoje fazemos a Semana na base da colaboração e da determinação, com pouquíssimos recursos, mas a consciência da importância de seguir trazendo conhecimento e renovação.”
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