Soprano Gabriela Geluda estreia ópera sobre o isolamento social

por Luciana Medeiros 14/09/2020

São quinze minutos que resumem um dia comum... no isolamento da pandemia. Uma mulher, Penélope, acorda. Lava as panelas, toma banho, canta, faz uma vitamina de banana, passa o aspirador de pó, escala as paredes do corredor. 

É um dia comum, mas distorcido, esticado e ao mesmo tempo contraído na situação anômala em que o tempo parece dissolvido. Penélope, vista em preto e branco, às vezes em ângulos inusitados, pode ser uma metáfora da espera sem fim. 

Quem dá vida à personagem é a versátil atriz e soprano Gabriela Geluda, que topou o desafio do compositor e poeta pernambucano – radicado no Rio – Armando Lôbo: criar e apresentar uma micro-ópera em tempos de pandemia, filmada e editada em tempo recorde – menos de dois meses no total. 

Penélope-19 – uma ópera doméstica estreia nas plataformas no dia 19, às 19h, combinação proposital que faz referência ao vírus Covid-19. Depois da estreia, Geluda e Lobo conversam com o público. Ele assina música, concepção, libreto, direção, mixagem e edição. 

[Divulgação]
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“Todo mundo preso em casa, né?”, conta o compositor. “Tive essa ideia, liguei para a Gabriela e ela topou tudo. Cada um trabalhou na sua casa. Só nos encontramos no dia da filmagem.”  Antes disso, Armando criou o script-partitura a partir de sons recolhidos pela atriz em casa – o barulho dos chinelos, da máquina de lavar, a voz treinando uma escala. Nesse meio tempo, saiu o edital Cultura nas Redes, da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, que deu uma pequena quantia a projetos para divulgação on-line.

Segundo Lôbo, a ideia central de Penélope-19 veio bem antes desses tempos de isolamento sanitário. “Na minha adolescência, eu era muito mais dedicado à literatura”, lembra ele. “E queria escrever um romance todo passado no meu quarto. Descobri que isso já havia sido feito pelo francês Xavier de Maistre: era Viagem ao redor do meu quarto, publicado em 1794. A pandemia trouxe a ideia de volta”. 

 

Nos quinze minutos da ópera em curta-metragem, muitas referências atravessam a tela. A maior delas, e nesse caso a maior inspiração, segundo o compositor, foi o belo conto de Albert Camus A mulher adúltera, em que a traição ao marido não se dá com outro homem, mas na paixão pelo deserto amplo, o céu noturno, a imensidão. Pela liberdade, enfim. “Esse é o único conto de Camus com protagonista feminina”, lembra Armando. “Como sou adúltera / deserto som da noite / um pesadelo de paz / são mil estrelas se aconchegando / paraíso que não satisfaz”, canta ela.

Penélope reclama do ex-marido, Leopoldo (como o Leopoldo Bloom/Ulisses de James Joyce), canta a deslumbrante ária Pur ti miro, de L'incoronazione di Poppea de Monteverdi (“em que dois personagens cruéis, odiosos, declaram seu amor um pelo outro”, explica), imita o macuco, grande pássaro do sertão, espécie ameaçada de extinção, cujo nome científico é Tinamus Solitarius. “São inspirações que se entrelaçam”, define a atriz.

Gabriela e Armando trabalharam juntos recentemente: ele é coautor com Beto Villares da ópera performática Migrações, com libreto de Geraldo Carneiro, apresentada em abril do ano passado e protagonizada por Geluda e Gabriela Luiz.  “Eu tenho a maior das afinidades artística e espiritual com a Gabriela Geluda”, garante Armando. 

O projeto, que contou com uma equipe reduzida (preparação de atriz por Isabella Lomez, figurino de Ticiana Passos), teve a câmera de Isadora Medella, que na maior parte das cenas usa com habilidade o celular. “Gravamos em um dia, das 9h às 22h, e foi uma experiência extraordinária”, assegura Gabriela, que é coprodutora. “Foi tão intenso e deu tão certo que já estamos preparando mais uma micro-ópera que vai integrar uma futura série de quatro.” 

Na verdade, a dupla inaugura, com Penélope 19, a Como – Companhia de Micro-óperas: “Esse é um formato interessantíssimo, inovador, e é uma abertura para um novo público, quem sabe?”. Armando ainda produz nos próximos tempos, entre outros trabalhos, um disco com música popular e música de câmera: “Vai se chamar Veneno Bento, um mergulho no sertão pós-armorial. Eu sou um compositor transgênero: música popular + erudita + tradicional + experimental + eletrônica + literatura + teatro + cinema + performance + etc, amarrado pela poética muito pessoal”, completa.

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