‘Deus! Onde estás?’

por Nelson Rubens Kunze 05/11/2023

Excelente ópera Contos de Júlia abre Festival de Música Erudita do Espírito Santo

Marcando a abertura da 11ª edição do Festival de Música Erudita do Espírito Santo, estreou na sexta-feira, dia 3 de novembro, no Teatro Sesc Glória, em Vitória, a ópera Contos de Júlia, de Marcus Siqueira e Veronica Stigger. A obra é ótima e ganhou uma impactante realização!

Contos de Júlia é baseada em três estórias do livro “Ânsia eterna”, da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). Nascida no Rio de Janeiro, Júlia Lopes de Almeida é situada na literatura brasileira na vertente do realismo-naturalismo. Foi uma mulher corajosa e de ideias progressistas, que defendia a abolição da escravidão, a república, os direitos civis de mulheres e o divórcio. Júlia foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras, em 1897, mas, por ser mulher, acabou impedida de ocupar uma vaga.

O livro “Ânsia eterna” foi publicado originalmente em 1903. Na ópera, cada um dos contos corresponde a um ato. São estórias fortes, duras, até aberrantes (atenção, pule o próximo parágrafo se quiser evitar os detalhes do horror), que expressam questões humanas e também questões próprias do universo da mulher, como a maternidade, o amor, o desejo, a espiritualidade, a loucura e a morte. 

O primeiro ato, Os porcos, fala de uma cabocla engravidada pelo filho do patrão, que é ameaçada de ter o seu nenê tomado e ser oferecido como ração aos porcos. “Deus! Onde estás?”, chama a mulher grávida, angustiada. O segundo, Os moços, aborda o drama de um amor frustrado por convenções sociais. Por fim, fechando a ópera, Os cisnes, em que a protagonista vai aos extremos da loucura. Os três contos tratam de uma existência de horror, sofrimento e desesperança.

O libreto foi preparado por Veronica Stigger, que fez a escolha dos contos. Veronica logrou condensar as tramas em textos econômicos e diretos e criou um quarteto vocal que, qual um coro grego, perpassa todos os atos com breves intervenções. O quarteto é o elemento do libreto que une as histórias. 

E tem a música, que atesta que estamos diante de um dos mais competentes compositores brasileiros da atualidade. Marcus Siqueira é um músico que domina o seu métier com rara inventividade. Com uma orquestra que inclui harpa, contrafagote e uma ampla seção de percussão, o compositor extrai ricas sonoridades e efeitos em uma linguagem moderna de tonalidade expandida. Com cuidado e habilidade, Marcus constrói uma trama musical característica para cada um dos atos – em que cada um deles ganha uma estrutura dramática própria –, sem perder de vista o todo, que se conforma organicamente. A música tem passagens potentes e inspiradas. Ela conduz a narrativa, estabelecendo uma comunicação de grande expressividade. 

Como o Teatro Sesc Glória não tem fosso e é relativamente pequeno, a orquestra foi distribuída conferindo espacialidade sonora ao espetáculo: cordas e madeiras ficaram na frente tomando as primeiras filas da plateia, metais nas laterais da plateia superiora e a grande seção de percussão no fundo do palco.

Comum aos três atos, uma grande cortina translúcida, iluminada em diversas cores, delimita o espaço cênico ao fundo. Uma esfera do mesmo material, como uma lua, também marca toda a ópera. Para além disso, cada ato tem elementos cênicos próprios, alguns de caráter mais naturalista (como o tronco ou as cordas do primeiro ato), outros de formas geométricas. A cenografia é de Daniela Gogoni, a iluminação de Fábio Retti e os figurinos de Fábio Namatame.

A direção cênica é de Julianna Santos, que criou soluções simples e eficazes. Elemento decisivo na concepção foi um imenso véu branco, símbolo de vida, que aparece em momentos decisivos e estabelece uma ligação entre as três estórias.

Contribuiu para o sucesso da estreia o equilíbrio da performance da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo, sob a direção segura e atenta do maestro Gabriel Rhein-Schirato. Também o elenco como um todo teve boa participação. A personagem Umbelina do primeiro ato foi feita pela soprano Isabela Mestriner com grande entrega e convincente atuação cênica – um dos destaques da apresentação. Os solistas do conto Os moços foram o baixo-barítono Stephen Bronk e a soprano Laura Duarte, que formaram um par vocal e cenicamente bem homogêneo. Fechando o espetáculo, a soprano Isabella Luchi contracenou com a soprano Eliane Coelho, que, com concentração e arrebatamento, protagonizou outro ponto culminante do espetáculo. Participaram ainda os cantores Priscila Aquino, Vinicius Cestari e Rafael Siano.

A partir da condição opressiva e sufocante que a sociedade patriarcal impõe desde sempre à mulher, Contos de Júlia expõe recantos sombrios e escondidos da alma humana. Recantos em que habitam o desespero, a loucura e a morte. 

A ópera tem algo de estarrecedor – no prólogo, o quarteto vocaliza uma lamentação em notas longas e no fim ouve-se um rangido indeterminado... talvez uma moedeira... moedeira de vidas? Não é um assunto fácil, mas é um assunto que também compõe a nossa humanidade. E é a arte um dos melhores recursos que temos para perscrutar esses espaços lúgubres da alma (e, quem sabe, desanuviar os nossos sentidos para que reconheçamos os caminhos que estamos trilhando...).

O 11º Festival de Música Erudita do Espírito Santo tem direção geral de Tarcísio Sartório, direção executiva de Natércia Lopes e direção artística de Livia Sabag. A curadoria artística é de João Luiz Sampaio, que construiu a programação tendo como mote uma frase de poema de Fernando Pessoa: Como é por dentro outra pessoa? A ópera Contos de Júlia já nos dá algumas pistas...

A abertura da 11ª edição do Festival de Música Erudita do Espírito Santo foi gravada e pode ser assistida neste link

[Nelson Rubens Kunze viajou à Vitória e assistiu à abertura do 11º Festival de Música Erudita do Espírito Santo a convite da Coes, Companhia de Ópera do Espírito Santo.]

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Cena final da ópera ‘Contos de Júlia’ (reprodução YouTube)
Cena final da ópera ‘Contos de Júlia’ (reprodução YouTube)

 

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