Drama, ilusão e uma reflexão sobre a arte

por João Luiz Sampaio 21/08/2022

Duas óperas escritas a partir de textos do russo Anton Tchékhov foram reunidas em um espetáculo apresentado nos últimos dias no Theatro São Pedro de São Paulo. A primeira a subir ao palco foi Palestra sobre pássaros aquáticos, de Dominick Argento, também autor do libreto da obra inspirada em Os malefícios do tabaco. Em seguida, O canto do cisne, música de Leonardo Martinelli, libreto de Livia Sabag, em estreia mundial. No conjunto, um espetáculo de enorme qualidade na criação e na interpretação, desde já um marco em um ano tão pródigo em montagens operísticas.

Os malefícios do tabaco é um breve monólogo em que um homem é obrigado pela mulher a dar uma conferência sobre os males do tabaco. O tema pouco parece lhe interessar e, em vez de abordá-lo, o palestrante passa todo o tempo falando de sua vida, da opressão da mulher, do casamento infeliz, da relação pobre com as filhas. 

John Gassner, citado por Aurora Bernardini em Aulas de Literatura Russa (publicado pela Editora Kalinka), afirma que “o mais trágico numa vida comum é que ela vai sendo desgastada e empobrecida”. “A vontade é atrofiada, os nervos são destemperados, o cérebro é confundido e a vida vai ficando mais e mais depauperada”, diz – e o comentário parece perfeito para definir Nioukhine, o palestrante de Tchékhov. 

Mas, no caminho até a transformação em ópera, o monólogo sofre algumas alterações. Argento substituiu o tema da conferência, não mais sobre os males do tabaco, mas, sim, sobre pássaros aquáticos (sobre eles, o compositor extrai informações do compêndio As aves da América, de J.J. Audon, levando assim a história para Maryland, nos EUA).

A mudança lhe permite preencher o monólogo com referências às aves que, na verdade, servem mesmo para dialogar com o próprio estado de espírito do personagem. Os filhotes dos corvos-marinhos-de-faces-brancas expulsam os pais de seus próprios ninhos, ele diz, evocando a própria relação com as filhas. A fêmea afunda e leva o macho junto, até que “apenas sua cabeça fique visível acima da água” – ele está falando do Falaroporo do Norte, mas também da relação com a esposa. E por aí vai.

Preencher dessa forma o monólogo é em certo sentido tornar óbvio, didático, o que a ironia e a linguagem despojada do texto de Tchékhov já oferecem em termos de aprofundamento psicológico. Mas isso talvez tenha a ver com outra diferença importante entre a peça e a ópera. No original, Nioukhine tem gestos largos, grandiosos, arrota uma erudição que não tem, diminui a plateia. É quase uma paródia de si mesmo. Já na ópera, não há distinção entre o palestrante o marido que se preocupa com a mulher a observá-lo dos bastidores. Estão ambos presos em uma tragédia pessoal que faz do mundo um lugar estranho, amedrontador. Mesmo nos momentos de maior exaltação, a música o expõe para, logo em seguida, devolvê-lo a um lugar de hesitação, de vergonha. A paródia é substituída pelo patético, pelo desejo de provocar a comoção da plateia, alguma piedade, que é só o que lhe resta.

Licio Bruno em cena de 'Palestra sobre pássaros aquáticos' [Divulgação/Heloisa Bortz]
Licio Bruno em cena de 'Palestra sobre pássaros aquáticos' [Divulgação/Heloisa Bortz]

Isso dá ao personagem um outro tipo de humanidade, tão bem explorado pela direção de Livia Sabag e pela atuação de Licio Bruno, daquelas capazes de definir uma carreira. Ao olho que pisca de forma nervosa, eles acrescentam um outro sintoma físico: cada passo adiante é acompanhado por outro, para trás, sempre com surpresa, como se ao caminhar para frente ele se deparasse com um obstáculo que existe apenas em sua própria mente. Mas é mais do que isso. Todo o gestual sugere nervosismo, angústia, um homem cujo corpo e olhar nos diz estar à beira de uma explosão– e cujo drama é justamente o fato de que ela não virá.

Essa caracterização é também musical. Argento coloca de maneira bem-marcada a música da palestra e a música do palestrante. E une ambas em um canto anguloso, no qual qualquer indício de lirismo é logo interrompido, muitas vezes de forma violenta – violência retratada com vigor como parte de uma atenção a contrastes que marca a leitura teatral de Gabriel Rhein-Schirato à frente da Orquestra do Theatro São Pedro. Teatral na melhor acepção que o termo pode ter: atenta a sutilezas, abrindo espaço para os cantores, mas reivindicando para si a capacidade de oferecer às histórias camada múltiplas – o que acontece também em O canto do cisne. Rhein-Schirato é um maestro maduro, tão à vontade com o repertório tradicional como com a nova criação. Símbolo de uma geração que merece mais espaço nos nossos principais teatros à medida em que buscam novos caminhos e sentidos.

A arte da ilusão

Há algo de muito tocante em ver juntos no palco dois nomes tão marcantes para a ópera brasileira, a soprano Eliane Coelho e o tenor Mauro Wrona. Dois artistas veteranos, refletindo por meio de seus personagens sobre o sentido pessoal e coletivo da arte, e fazendo isso dando mostras de vigor dramático e inteligência musical, com Eliane revelando-se não apenas uma cantora de exceção, mas também uma grande atriz.

Isso acontece em O canto do cisne, ópera baseada na peça de mesmo nome que, por sua vez, nasceu da adaptação feita pelo próprio Tchékhov de um de seus contos. Livia Sabag assina o libreto, Leonardo Martinelli, a música. Mas, em entrevistas, ambos fizeram questão de ressaltar que este foi um processo coletivo de criação, com os intérpretes acompanhando o tempo todo a confecção tanto de texto como de música.

Na peça, o experiente ator Svetlovidóv (na ópera, substituído por uma atriz, Sra. Olga) acorda em seu camarim após uma apresentação em sua homenagem. A princípio sozinho e, em seguida acompanhado do Ponto, Nikita Yványtch, ele reflete sobre sua vida e sobre se algum sentido existiu em passá-la sobre o palco. Enquanto olha para sua trajetória, interpreta trechos de papeis famosos vividos ao longo de sua carreira. 

A estrutura da história coloca desafios ao compositor. Mas Martinelli cada vez mais mostra sua capacidade de fazer teatro com música, inovando a partir de uma impressionante depuração de efeitos de ideias musicais. Seja na recusa de sugestões figurativas ou pictóricas nos momentos em que a partitura assume papel de música incidental para os trechos de peças interpretados pela atriz; seja na escrita para as vozes – que caracteriza tão bem os dois personagens com uma personalidade própria –; seja nos contrastes e saltos que dão a Olga um caráter quase expressionista, que reforça e ao mesmo tempo relativiza o realismo cru da história.

E essa relativização parece central para o drama. Em um estudo sobre as peças-curtas de Tchékhov, Vera Gottlieb escreve que, em O canto do cisne, o autor joga com diferentes camadas de ilusão. Ele, em suas palavras, cria ilusão parecendo que expõe ilusão, ou seja, oferece ilusão pela aparente exposição da realidade. No palco, a ficção narra a percepção cruel da realidade de um personagem que emerge da melancolia apenas quando passa a interpretar a ficção de suas personagens. 

O modo de estabelecer a mediação entre o palco e o público torna-se fundamental. E Livia Sabag, o cenógrafo Renato Theobaldo e Valéria Lovato, responsável pela luz, acrescentam ainda mais uma camada ao jogo. O cenário não está colocado exatamente de frente ao público: ele se volta levemente ao lado esquerdo do palco. E com isso a direção foge da solução de fazer dos bastidores do São Pedro o palco da ação; o fosso da orquestra, o fosso de que Olga fala no texto; a plateia, o alvo silencioso das lamúrias da atriz com relação à postura do público. 

A ilusão está mantida. E essa escolha só torna ainda mais inesperado e eficiente o momento em que Olga quebra a quarta parede e se dirige à plateia com um trecho de A alma boa de Setsuan, de Brecht, escrita mais de trinta anos após a morte de Tchékhov.

“E agora, público amigo, não nos interprete mal: sabemos que este não é um excelente final! Nós imaginávamos uma história cor de ouro e ela, disfarçadamente, assumiu um tom de agouro. Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado, tanto problema em aberto e o pano de boca tantas vezes fechado. Talvez nada nos ocorra, agora, por puro medo: isso acontece! Entretanto, como encerrar este enredo? Já quebramos a cabeça e nada achamos, no fundo: se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo, ou se os deuses fossem outros ou nenhum... Para esse horrível impasse, para encontrar uma solução talvez somente se vocês mesmos se entregarem à reflexão. Prezado público, vamos: procurem resolver! Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver!”

Não parece ser uma escolha inocente. Na peça de Brecht, Shen Teh recebe dos deuses um prêmio por sua bondade e um teste – dão a ela dinheiro para melhorar de vida e esperam para ver se isso a fará mudar sua relação com as pessoas. Mas Shen Teh logo se dá conta de que o mundo à sua volta se tornou em caos e que ela passa a sofrer diferentes tipos de abuso. E é apenas quando interpreta um primo fictício, Shun Ta, que consegue restaurar algum tipo de ordem em sua vida. 

Para Brecht, conclamar o público, ao final da história, é uma forma de provocá-lo a refletir sobre a ordem social em que o mundo se assenta. Na ópera, porém, a mensagem final também se torna uma reflexão a respeito da própria arte e seu papel na sociedade.

E aqui se fecha um ciclo proposto pela montagem. Na ópera de Argento, um aspecto apresentado de passagem no texto de Tchékhov ganha maior importância: a relação do Palestrante com a música, o piano, no qual ele é capaz de acessar um mundo que não é o de seu cotidiano opressivo. Na ópera de Leonardo Martinelli e Livia Sabag, da mesma forma, interpretar seus velhos papeis aos poucos tira Olga do estado de torpor e ansiedade com que inicia a obra – muito mais do que na peça do dramaturgo russo. 

E, quando a atriz e o ponto deixam o palco, vem o lance final. Os dois, braços dados, voltam a cabeça para o público. E sorriem um sorriso maroto. Após duas horas de drama, ele é desconcertante. Mais uma camada de ilusão? Foi tudo aquilo uma enorme farsa? O que é real, o que não é? Não precisamos saber, pois a dúvida, por sugerir a reflexão, faz parte da arte. 

E, em um mundo que se pretende feito de certezas, precisamos dela, e da ilusão que enseja, mais do que nunca. 

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Eliane Coelho e Mauro Wrona em cena de 'O canto do cisne' [Divulgação/Heloisa Bortz]
Eliane Coelho e Mauro Wrona em cena de 'O canto do cisne' [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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