Nos períodos barroco e clássico, quase todas as mulheres que se destacaram como instrumentistas e compositoras vieram de famílias de músicos. Tendo pais que trabalhavam para cortes ou igrejas, Francesca Caccini (1587-1640), Elizabeth Jacquet de la Guerre (1665-1729) ou Maria Anna Mozart (1751-1829) puderam aprender o ofício desde a infância, aí incluídas a leitura de partitura e teoria, o que as preparou para a composição.
Algumas conseguiram vencer os inúmeros obstáculos colocados à sua frente e atuar profissionalmente, como Caccini, que chegou a ser o músico mais bem pago da corte dos Medici e nos deixou a primeira ópera escrita por uma mulher. Outras não tiveram a mesma sorte e, quando adultas, foram obrigadas a recolher-se à vida doméstica – como Maria Anna, a irmã de Mozart.
No século XIX, durante o romantismo, o perfil das mulheres que fizeram carreira musical está ligado ao piano. O instrumento, presente nas casas burguesas, era utilizado como diversão em reuniões sociais, passatempo doméstico e como um diferencial na educação das moças: assim como falar francês ou fazer crochê, tocar piano poderia ser um fator de distinção na busca de um bom casamento.
A maioria delas aprendeu música no ambiente doméstico e, ao demonstrar um talento fora da média e a vontade de prosseguir, tiveram que enfrentar primeiro a resistência familiar, depois os entraves que se colocavam à sua frente pelo simples fato de não serem homens. Mudam detalhes, mas foi assim com a alemã Fanny Mendelssohn (1805-1847), a brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935), as francesas Cécile Chaminade (1857-1944) e Germaine Tailleferre (1892-1983) ou a norte-americana Amy Beach (1867-1944), entre muitas outras.
O pai de Cécile Chaminade, um próspero diretor de uma companhia de seguros, achava que não pegava bem uma jovem de sua classe social ir à escola de música
Chaminade se iniciou ao piano com a mãe, que tocava e cantava. O primeiro professor, notando o talento fora do comum, recomendou que ela se matriculasse no Conservatório de Paris para uma formação mais ampla. Mas seu pai, um próspero diretor de uma companhia de seguros, achava que não pegava bem uma jovem de sua classe social ir à escola de música. Entraram num acordo: ela poderia tomar aulas particulares com o corpo docente do Conservatório.
Por volta dos 20 anos, Chaminade iniciou carreira como instrumentista e compositora. O sucesso das primeiras obras, escritas para piano, encorajou-a a composições maiores. Ao final da década de 1880 a carreira de Chaminade entrou em seu auge por dois motivos. A morte do pai em 1887 lhe deu total liberdade e fez com que sua atuação profissional fosse um meio importante de subsistência da família. E, logo em seguida, em 1888, ela estreou seu Konzertstück para piano e orquestra, que será um de seus trabalhos mais bem-sucedidos, tocado em grandes cidades europeias e norte-americanas. Chaminade, aliás, foi muito admirada nos EUA – estima-se que, no início do século XX, havia cerca de 200 clubes com o nome dela naquele país, formados principalmente por mulheres musicistas amadoras.
A Primeira Grande Guerra marcou um arrefecimento de suas atividades como compositora. Com o final do conflito, ela retomou a performance, mas aos poucos se aposentou dos palcos. Morreu em Monte Carlo, no dia 13 de abril de 1944.
Cécile Chaminade deixou algumas centenas de peças, a maioria para piano solo. Como quase todas as compositoras mulheres, seu nome e obra caíram no esquecimento pouco depois de sua morte, e seu legado vem sendo recuperado nas últimas décadas, no esteio de um movimento feminista nas artes.
O recém-lançado nas plataformas digitais Miniatures: the music of Cécile Chaminade deve ser entendido dentro desse contexto. Primeiro trabalho solo da pianista Olga Kopylova, o disco é todo dedicado a pequenas peças para piano da autora francesa. Pequenas, mas nem por isso simplórias. Dentro de uma estética romântica, demonstram a escrita elegante e o discurso musical sólido da compositora. “Fiquei absolutamente fascinada com toda a obra dela”, afirma Kopylova. “Miniaturas, sonatas, ciclos, estudos – ela escreveu mais de 300 obras para piano e todas apresentam elementos musicais riquíssimos.”
Se é verdade que se encontra muito lirismo (ou “graciosidade”) nessas peças, há também muito virtuosismo e força.
Com o avanço da composição feminina no século XIX, críticos se apressaram em criar uma catalogação sexista das músicas. Obras “femininas” seriam aquelas graciosas e dedicadas a pequenas formas. Ir além disso, para uma mulher, significava adentrar terrenos que não lhe diziam respeito. Se é verdade que se encontra muito lirismo (ou “graciosidade”) nessas peças, há também muito virtuosismo e força. Um dos melhores exemplos está na Toccata op.39. “Trata-se de uma peça muito virtuosa, que na minha opinião pode ser tranquilamente incluída no repertório dos concursos, como peça técnica de confronto”, afirma Kopylova. “Essa composição em nada perde para as toccatas de Schumann op. 7 e de Prokofiev op.11 em termos de desafios técnicos”, completa.
Olga Kopylova – pianista titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo desde 2000 – diz que se aproximou da obra da compositora durante os meses de pandemia. É provável que o recolhimento tenha colaborado para sua interpretação cuidadosa, rica em detalhes e que constrói um universo musical pleno de sentidos para cada peça. Com 15 faixas, o disco é uma bela forma de se ingressar no universo pianístico de Cécile Chaminade, umas das mais importantes compositoras francesas do final do romantismo.
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