Uma missa antiga para os nossos dias

por Nelson Rubens Kunze 25/06/2022

Apresentação dirigida pelo maestro Luiz de Godoy coloca obra-prima de Padre José Maurício em novo contexto e advoga convivência com a diversidade 

Na sexta-feira dia 24 de junho, a Catedral Evangélica, em São Paulo, estava lotada para ouvir a Missa de Santa Cecília do padre José Maurício Nunes Garcia. A programação foi do Festival Sesc de Música de Câmara, e a interpretação contou com a Osusp, com os Meninos Cantores de Hamburgo, com os artistas da Ocupação Cultural Jeholu e com solistas vocais dirigidos pelo maestro Luiz de Godoy. E foi um grande sucesso!

Antes da apresentação, o maestro Godoy, que é negro, nascido em Mogi das Cruzes, e que desenvolve brilhante carreira na Europa, tomou o microfone para agradecer pela oportunidade de reger uma obra de um gênio brasileiro, Pe. José Maurício, negro também, descendente de escravos libertos. Godoy chamou a atenção para o “apagamento” da obra desse compositor e para a história de discriminação da produção e da cultura negras. O maestro falou também da necessidade e oportunidade que temos no Brasil de construir uma nação diversa e sincrética, com uma verdadeira democracia racial, e de sua esperança por uma convivência interreligiosa e interracial. 

Assim, o concerto foi também uma celebração, pois, como lembrou Godoy, estávamos em um templo evangélico para ouvir uma missa católica, escrita no Brasil há 200 anos por um compositor negro, executada por solistas negros, por um coro alemão e por uma orquestra brasileira, e com a participação de artistas da Ocupação Cultural Jeholu. Em um país em que todos os tipos de discriminação viraram política de governo, é uma alentadora mensagem de convivência e otimismo.

Padre José Maurício Nunes Garcia foi a maior personalidade musical brasileira de seu tempo. Nascido no Rio de Janeiro em 1767, tornou-se mestre de capela da Catedral do Rio de Janeiro. Com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, foi inicialmente reconhecido e prestigiado – apesar de seu “defeito de cor” –, vindo a ser diretor da Capela Real. Contudo, a chegada ao Brasil do compositor português Marcos Portugal, em 1811, acabou roubando-lhe espaço e Padre José Maurício perdeu apoio. Somando-se a isso as inseguranças políticas e sociais da época, o músico passou dificuldades vindo a morrer praticamente na miséria, em 1830. Nessa última fase, contudo, sua produção artística não arrefeceu. Foi então que compôs algumas de suas obras mais significativas, como essa Missa de Santa Cecília, que é sua última composição e data de 1826.

Com uma linguagem de características já clássicas, a Missa de Santa Cecília tem cerca de 80 minutos de duração e é considerada por diversos estudiosos como sua obra mais importante. A musicóloga e regente Cleofe Person de Mattos (1913-2002), que realizou inestimável trabalho de catalogação da obra de Padre José Maurício e é a autora da principal biografia do compositor, escreveu: “A encomenda, partida da Irmandade de Santa Cecília que reunia, em grande número, amigos e antigos alunos, encontrava o compositor já no fim da vida, sofrido e desgastado pela pouca saúde, pelas dificuldades e por muita amargura. Sem dúvida trouxe-lhe alento o convite para compor. Se a obra, sob vários aspectos, pode acusar sinais da pressa com que foi composta, não é menos evidente que o convite galvanizou as forças de que dispunha o compositor e do qual resultou um todo que, sob muitos aspectos pode ser apreciado como das mais afirmativas realizações de sua criação, não só em termos de harmonias escolhidas e melodias expressivas ou no gosto de instrumentação, como na força de sua estrutura musical, e seu conteúdo”.

No geral, foi muito boa e equilibrada a apresentação. Os instrumentos modernos da Osusp e o grande número de artistas encheram a Catedral Evangélica de som. Participaram como solistas as sopranos Erika Muniz e Tatiana Reis, a contralto Juliana Taino, o tenor Mar Oliveira e o baixo-barítono David Marcondes. O coro dos Meninos Cantores de Hamburgo, com quase 50 membros, todos de branco, integrou-se perfeitamente à interpretação. O resultado foi uma execução orgânica e convincente, dirigida com grande senso musical pelo excelente maestro Luiz de Godoy.

Único porém da noite: no lugar em que eu estava, mais ao fundo, em razão da reverberação do espaço, ouvia-se o som algumas vezes meio embolado. Assim, detalhes como coloraturas ou ornamentações eventualmente se perderam. Talvez a apresentação de hoje (sábado dia 25), no Sesc Guarulhos, e especialmente a de amanhã (domingo), no Theatro Pedro II em Ribeirão Preto, garantam uma condição acústica mas favorável.

[Clique aqui para informações sobre o concerto em Guarulhos.]

[Clique aqui para informações sobre o concerto em Ribeirão Preto.]

[Acervo CONCERTO. Clique aqui para ler mais sobre a vida e a obra de  Pe. José Maurício em texto de Camila Fresca publicado na edição de abril de 2010 da Revista CONCERTO.]

 

Na Catedral Evangélica, público aplaude apresentação da ‘Missa’ (Revista CONCERTO)
Na Catedral Evangélica, público aplaude apresentação da ‘Missa’ (Revista CONCERTO)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.