Passado, presente, futuro: o piano de Karin Fernandes

por Camila Fresca 28/02/2022

Pianista lança álbum dedicado ao piano brasileiro do século XIX e prepara o segundo volume da série de piano contemporâneo Cria – nova música brasileira

Há algum tempo, a música brasileira do século XIX vem recebendo atenção renovada, com trabalhos acadêmicos e boas gravações que nos revelam um passado musical que durante décadas ficou em segundo plano. Os principais autores dessa geração – Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald e Leopoldo Miguez – foram os primeiros a circular em roupagem renovada. Agora, finalmente, temos a oportunidade de nos aprofundar no romantismo brasileiro, conhecendo outros autores que, se não tiveram a liderança dos nomes citados, foram figuras centrais de sua época, com atuação multifacetada e um legado que precisa ser conhecido.   

O novo álbum da pianista Karin Fernandes, “O piano brasileiro no século 19”, é uma colaboração importante nesse processo. Conhecida por seu trabalho com repertório dos séculos XX e XXI, Karin é uma das mais importantes e atuantes pianistas brasileiras, e este é nada menos do que seu 14º álbum. 

A abertura do disco fica com a peça que deu início à seleção de repertório, segundo a pianista: a linda canção Coração, de Marcelo Tupinambá (1889-1953), em arranjo de Hercules Gomes. Na sequência, Improviso e Noturno vêm reforçar o compositor extraordinário que foi Alberto Nepomuceno (1864-1920). Se a peça de Tupinambá foi uma pequena surpresa, outra enorme são os três Étude pour virtuose, de Arthur Napoleão (1843-1925), que Karin grava pela primeira vez com exclusividade. Exímio pianista, o português Arthur Napoleão se estabeleceu no Rio de Janeiro em 1866 e teve um papel importante tanto como professor de música quanto como comerciante de instrumentos musicais e editor, por meio da famosa Casa Arthur Napoleão. Também atuou como concertista e sabia-se que tinha deixado obras para piano, mas até o momento elas pouco ou nada haviam circulado.

 

O pianismo lírico e sensível de Chiquinha Gonzaga (1847-1935) também é revisto por Karin, que faz a primeira gravação de duas valsas da autora em sua versão original: Harmonias do coração e Angelitude. Com sua verve popular e seu talento para canções, Chiquinha é frequentemente abordada a partir de arranjos e adaptações que a aproximam do mundo contemporâneo. Ouvir as versões originais de sua obra nos ajuda a compreender o universo musical no qual ela estava mergulhada.

Mormorio, de Carlos Gomes (1836-1896), e Barcarola, de Henrique Oswald (1852-1931), completam a seleção, que soa equilibrada e coesa na interpretação apurada e inteligente de Karin Fernandes.

Leia abaixo duas perguntas de uma minientrevista que fiz com a pianista, sobre seu olhar para o século XIX bem como seus próximos projetos. Karin faz um recital de lançamento do disco “O piano brasileiro no século 19” no próximo domingo, dia 6, no Theatro São Pedro.

Qual foi o ponto de partida para a gravação de “O piano brasileiro no século 19”? Ao invés de olhar para o século XX ou XXI, como costuma fazer, por que escolheu o XIX?
Sempre tive uma veia militante em prol das coisas nas quais acredito. E acredito muito na arte contemporânea, basicamente por essa arte questionar o já estabelecido. Não que necessariamente o questionamento esteja certo, ou que o questionado esteja errado e não deva perdurar; mas porque se pararmos de questionar o que fazemos, também paramos de progredir. Por conta disso, esse questionamento sempre estará presente no que faço. Mas isso nunca fez com que eu deixasse de tocar ou ouvir o repertório do século XIX e o que posso dizer é que, quando decidi gravar valsas da Chiquinha Gonzaga que nunca ninguém gravou, estudos de Arthur Napoleão que nunca ninguém gravou, e outras peças brasileiras que são pouquíssimo tocadas, essa veia militante continuou presente e muito ativa, só se voltou para o passado. Paralelamente, percebi que todos os convites que recebia passaram a ser para tocar música contemporânea. Por um lado adoro isso, porque de certa forma construí um perfil, uma marca minha; mas por outro comecei a me achar limitada, e também gosto de tocar peças do século XIX. Tem tanta coisa maravilhosa nesse período que está esquecida, como não jogar luz nelas? Minha conclusão é que infelizmente ainda existe tanta coisa lá atrás que nunca ninguém tocou ou gravou que ainda precisamos tratar o passado com militância artística. Se pegarmos o caso da Chiquinha Gonzaga, por exemplo, é assustador que tantas peças dela ainda não tenham sido gravadas. E eu poderia citar aqui uma longa lista de compositoras e compositores brasileiros do século XIX que ninguém conhece, toca ou grava. Pensando assim não vejo diferença da música brasileira do século XIX com a música nova. 

Você olha para uma figura importante do período, Arthur Napoleão, gravando pela primeira vez três dos 18 Études pour virtuoses dele. Poderia falar sobre essas obras e sobre seus planos futuros em relação ao compositor?
Os 18 Études são peças de bastante virtuosismo. Alguns me parecem exercícios para um tipo específico de progressão harmônica, mas outros considero como composições bastante consistentes e belas. Napoleão dedicou vários deles a personalidades musicais da época, como José Vianna da Motta, Barrozo Netto, Alberto Nepomuceno, Antonieta Rudge e Henrique Oswald. Eu não sabia da existência dessa série do Napoleão e nem que nunca tinha sido gravada. Na verdade, alguns nunca foram tocados, provavelmente. Esse fato em si já me despertou muita curiosidade, e quando dei uma lida geral neles me encantei por esses três que gravei no álbum. Ano passado, resolvi tentar um patrocínio para gravar os 18. Redigi um projeto que foi aprovado pelo ProAC Edital, concorrendo com mais de 1.500 outros projetos. Boa parte dos meus outros 13 álbuns foram projetos para os quais fiz a pesquisa, orcei, redigi um projeto de patrocínio, fiz a produção, para alguns escrevi os textos e em um deles fiz até fotos e projeto gráfico – além de tocar, é claro. Mas há alguns anos tinha deixado de lado essa minha faceta, então foi muito gratificante reativá-la e conseguir essa aprovação. Começo a gravar a integral dos Études no final de março. O lançamento será em agosto ou setembro. Paralelamente a esse álbum, também vou lançar o segundo volume da série de piano contemporâneo Cria – nova música brasileira. Além de já fazer propaganda desse álbum, também aproveito para mostrar que não abandonei o repertório contemporâneo. Fiquem tranquilas/os!

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 A pianista Karin Fernandes [Divulgação]
 A pianista Karin Fernandes [Divulgação]

 

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