Concurso Maria Callas: uma proeza no país do efêmero

por Jorge Coli 06/04/2022

Num país em que os projetos culturais são frágeis e efêmeros, é uma proeza manter as 20 edições de um certame que dura desde 1993

O Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas chegou, este ano, a sua 20ª edição com novo tônus. Abriu em grande classe, com um excelente concerto em que a Orquestra Sinfônica de Santo André, regida por Abel Rocha, mostrou como soava bem, clara, transparente, com brilho e precisão – uma delícia de ouvir. Os solistas foram antigos premiados, agora bem firmes em carreiras expressivas: Maria Sole Gallevi, Raquel Paulin, Andreia Souza, Daniel Umbelino, Rodolfo Giuliani, e o programa foi consagrado a Verdi e Carlos Gomes. Grande partida, dada no Teatro Sérgio Cardoso, na manhã de domingo, dia 27.

O Concurso contou ainda, este ano, com o apoio do consulado da Grécia (Maria Callas oblige) e da Itália. Este último também organizou um recital em sua sede da Avenida Paulista com antigos premiados: novamente Maria Sole Gallevi, Raquel Paulin, Daniel Umbelino, e o tenor Lucas Melo, de Pernambuco, laureado do ano passado. O pianista foi Daniel Gonçalves, que acompanhou brilhantemente também muitos candidatos do concurso.

Giordano, Leoncavallo, Bellini, Carlos Gomes, compunham o programa, bem interpretado, inda mais favorecido pela acústica da sala relativamente pequena. O jornalista italiano Sabino Lenoci fez uma palestra envolvendo as árias que foram apresentadas. O novo cônsul da Itália, que assumiu em fevereiro passado, sr. Domenico Fornara, pretende reforçar atividades culturais promovidas ou apoiadas pelo consulado, particularmente as musicais.

Fiz parte do júri que, com a minha exceção, foi composto por gente ilustre: maestro Luiz Fernando Malheiro, que entende de canto lírico como pouquíssima gente; o mezzo-soprano argentino Cecilia Diaz, grande Dalila de Saint-Saens que, entre outros papeis, ela cantou nos teatros internacionais; Sabino Lenoci, já citado acima; o jornalista espanhol Fernando Sans Rivière; o empresário José Velasco Guerrero, espanhol; Carlos Raucher, atuante em várias associações e conselhos musicais; a jornalista Fabiana Crepaldi, correspondente da revista mexicana Pro Ópera; e o presidente dos Amigos da Cia. Ópera São Paulo, Robson Tirotti. Além da competência, eles formaram o grupo mais simpático possível, e foi um recarregar de baterias a semana passada em São Paulo e Jacareí, ouvindo música, conversando sobre música, contando causos musicais.

Paulo Ésper, o organizador, um azougue que não para nem um segundo a fim que tudo dê certo, pode estar muito orgulhoso deste vigésimo concurso.

Junto com tudo isso, havia o trabalho a fazer: ouvir, analisar, selecionar, mais de quarenta candidatos.

No ano passado, por causa da pandemia, não vieram cantores de outros países. Este ano, sim. Em parte, salvaram o concurso. Porque, com exceções, ficou evidente que as boas escolas e os bons professores de canto são raros no Brasil. Jovens com bom material vocal, mas tão mal treinados e mal orientados que entristece. Alguns deles, no entanto, sobressaíram. Assinalo que o Concurso Maria Callas contribui para a melhora desse estado de coisas, trazendo no júri grandes cantores que são também grandes professores de canto, encarregando-os de masterclass. Neste ano, Cecilia Dias ofereceu duas, excelentes, para candidatos vencedores ou não.

Daquele grande conjunto, foram selecionados dezesseis. Dos dezesseis sobraram onze. Foram eles:

Daiane Scales, soprano, de São Paulo, prêmio Série Toriba Musical, 2022. Sua voz é calorosa, ágil: interpretou um Gentile di cuore, de Il Guarany e um Chacun le sait, de La Favorita, de Donizetti particularmente convincentes.

Carol Braga, mezzo-soprano do Rio Grande do Sul, também recebeu o prêmio Toriba, assegurando, com firmeza, tanto Rossini quanto Massenet.

Carlos Eduardo Santos, tenor, da Bahia, prêmio 11º encontro de tenores do Brasil de Manaus. Muita finura na interpretação, intuição musical e – talvez o único – capaz de cantar num francês impecável, que a maioria, e não apenas no Concurso, mas mesmo em cenas internacionais, estropia sem nenhum constrangimento essa língua difícil para o canto.

Ana Beatriz Machado, soprano, de Minas Gerais, prêmio Série Toriba Musical, 2022. Timbre aveludado, interpretação discreta e comovente.

Isaque Oliveira, barítono, de São Paulo, levou o terceiro lugar masculino do Concurso. Além de papéis de ópera, ele tem grandes qualidades de cantor de câmara: boa articulação, musicalidade, timbre redondo, ofereceu, em particular, uma bela interpretação da ária de Wolfram, no Tannhauser.

Guilherme Moreira, tenor, do Rio, classificou-se em segundo lugar masculino. Senhor de um material vocal respeitável, projeta a voz, e afirmou um convincente De miei bolenti spiriti, de La traviata, de Verdi.

O primeiro prêmio masculino coube ao barítono mexicano Carlos Arambula, canto seguro, dominado: um primeiro prêmio indiscutido e muito merecido.

O terceiro prêmio feminino foi ex-aequo ao mezzo-soprano Julia Martins Salomon, brasileira, e Candela Gotelli, argentina, soprano, ambas de boa categoria.

Itzeli Jáuregui, mezzo-soprano vinda do México, obteve o segundo prêmio e o Prêmio Festival Amazonas de Ópera: qualidades de timbre, de projeção vocal, de musicalidade.

Enfim, o primeiro prêmio coube a outra mexicana, Fernanda Allande. Foi uma revelação. Soprano de apenas 24 anos, interpretou com qualidades excepcionais: controle da emissão, do vibrato, da dinâmica, capaz de magníficos pianos, presença poderosa da voz, timbre de grande beleza. Se souber conduzir sua carreira, escolhendo os papeis adequados, estará entre as estrelas futuras da ópera.

Volto a insistir sobre a impressionante tenacidade de Paulo Ésper e de sua equipe, lutando com muitas dificuldades, buscando as verbas mirradas do poder público e da iniciativa privada, organizando ele próprio todos os aspectos do concurso – que este ano incluiu uma exposição sobre Maria Callas em Jacareí. Num país em que os projetos culturais são frágeis e efêmeros, manter as 20 edições de um certame que dura desde 1993, é uma proeza.

Que todos, premiados ou não, insistam no canto lírico, e que façam belas carreiras!

 


Orquestra Filarmônica Sinos Azuis

Aproveitei uma folguinha no dia 27, domingo, às 18 horas, para descobrir uma orquestra que eu não conhecia.

Tem um nome curioso: Orquestra Filarmônica Sinos Azuis. O jovem spalla, com um jeito simpático de nerd, que comentava as obras, explicou que o nome vinha de que sinos azuis são flores muito bonitas. Ainda bem que eles não preferem as Marias sem-vergonha.

O concerto ocorreu na Sala Guiomar Novaes, da Funarte, em São Paulo. Os pobres músicos, e o público também, tiveram que suportar um calor muito forte. Nada de ar-condicionado. Para quê investir na cultura, não é mesmo?

Trata-se de uma orquestra amadora, incluindo neste adjetivo os sentidos mais nobres e elevados da palavra. Jovens músicos, dentre os quais o contrabaixista Webster Silas, um dos principais idealizadores, decidem se reunir para fazer música em conjunto e formam essa orquestra.

Naquela tarde de domingo, ocorreu algo de uma comunhão entre quarenta pessoas querendo ouvir música – o público que havia ali – e o conjunto de jovens querendo fazer música. Um bálsamo, nestes tempos calamitosos.

Foram apresentados o Concerto nº 2 de Haydn, para violoncelo, com o solista Alberto Mota Kanji; e a Sinfonia 40 de Mozart, regida por Monica Giardini.  

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A soprano mexicana Fernanda Allande venceu o primeiro prêmio (divulgação, Francielle Arantes)
A soprano mexicana Fernanda Allande venceu o primeiro prêmio (divulgação, Francielle Arantes)

     

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