Cancelamento do Festival Amazonas de Ópera é pouco razoável e muito destrutivo

por Nelson Rubens Kunze 09/03/2024

Uma compreensão mais abrangente das influências e dos efeitos do Festival certamente evitaria o equívoco da decisão; Festival é estruturante e também instrumento de educação e de promoção social

A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do estado do Amazonas afirmou em nota que o motivo do cancelamento da 26ª edição do Festival Amazonas de Ópera seria um “decreto de redução de gastos, para manter o equilíbrio orçamentário do governo e manutenção de serviços prioritários” (leia aqui). O decreto, ao que parece, é sensato e responsável. O problema aqui é a dose draconiana que sobrou para a Cultura, e em especial para o Festival Amazonas de Ópera. 

Como o próprio nome diz, redução de gastos é redução, não corte total. Você reduz 10%, 20%, 30%... E, claro, você diferencia serviços prioritários. Então, para não comprometer os serviços prioritários, você corta mais de outras áreas não prioritárias.

Considerando os índices sociais e econômicos críticos de algumas regiões do estado do Amazonas, é compreensível que a Cultura não entre na lista das prioridades. Mas não compreendo por que o principal festival de ópera do país, que mostra aos olhos do mundo um pouco da civilidade e da humanidade da Amazônia – não vamos nos esquecer de que lá fora, hoje, quase só se associa a Amazônia a queimadas, garimpo ilegal e genocídio indígena –, seja simplesmente limado da agenda do governo. Eu acho uma decisão pouco razoável e muito destrutiva cancelar um festival estruturante que é também instrumento de educação e promoção social.

Não é razoável o poder público cancelar um dos mais exitosos projetos de cultura e de educação realizados no Brasil. Sim, também educação! Pois o FAO é apenas a ponta de uma estrutura pedagógico-cultural desenvolvida no estado do Amazonas há mais de 25 anos, que é um marco no desenvolvimento civilizatório – ou deveria ser! – daquela região do país. 

Pois foi a partir deste festival que o governo do Amazonas criou, em 1998, o Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro, uma das mais bem-sucedidas ações de política pública na área da cultura de nosso combalido país. Conforme o portal oficial do estado do Amazonas, o Liceu atende uma média anual de três mil alunos e mantém dez grupos artísticos! Não sou cientista social, mas pelo que eu vejo da realidade da capital do Amazonas, esta sem dúvida é uma importante e inestimável contribuição para a educação e a promoção social da região... ou será que não é?

Além dessa enorme revolução socioeducacional, também é pouco razoável desprezar o impacto econômico do Festival Amazonas de Ópera, demonstrado em diversas oportunidades pela diretora executiva Flavia Furtado para plateias de todo mundo. Foi a partir do FAO que foram criados diversos corpos artísticos profissionais, como a Orquestra Amazonas Filarmônica, o Coral do Amazonas, a Amazonas Band e o Balé Folclórico do Amazonas. Além disso, foi criada a Central Técnica de Produção (CTP), que hoje atende diversos eventos culturais do estado e que serve de paradigma para os teatros de ópera brasileiros – sim, quando há autoridades do Theatro Municipal de São Paulo ou do Theatro Municipal Rio de Janeiro em Manaus, uma das primeiras visitas da agenda é a CTP.

Cada edição do Festival Amazonas de Ópera mobiliza dezenas de profissionais especializados – hoje, graças ao trabalho de mais de 25 anos, praticamente todos da região amazônica – estabelecendo uma valorosa cadeia produtiva. É uma enorme máquina de produção cultural que induz desenvolvimento, capacitação profissional e alavanca qualidade.

Estudos realizados em grandes eventos culturais apontam que o valor investido nessas ações resulta sempre em um retorno financeiro muito maior na economia local. Em 2018, uma análise realizada pela Fundação Getúlio Vargas na Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, concluiu que para cada R$ 1 investido, R$ 13 retornam para a região (clique aqui para ler matéria do jornal Folha de S. Paulo). Trabalho semelhante foi realizado pela FGV no Festival de Inverno de Campos do Jordão de 2019, em que o resultado indica retorno à economia local de R$ 16,7 para cada R$ 1 investido (clique aqui para ler). Isso é ou não é um importante impulsionador econômico?

Para voltar à ópera, lembro aqui de texto que publiquei em 2017 sobre um estudo que analisou o “motor econômico” do Festival de Salzburg, na Áustria (clique aqui para ler). Baseado em ampla e criteriosa amostragem, o estudo apontou que o valor gerado pela demanda do festival (215 milhões de Euros) alcançou quase quatro vezes o orçamento total do evento (59,6 milhões de Euros). Ali, o recolhimento de tributos e taxas para o poder público e para a seguridade social (77 milhões de Euros) excedeu o valor que a cidade investiu no Festival. Em outras palavras, o estado recolheu em impostos mais do que investiu no evento!

Deixo para o fim, mas não por ser menos importante, o valor artístico do Festival Amazonas de Ópera. Também aqui é pouco razoável brecar uma máquina de produção que conta com alguns dos maiores artistas brasileiros e com estrangeiros de carreira no cenário internacional. Dirigido desde a virada do milênio pelo maestro Luiz Fernando Malheiro – um dos maiores regentes de óperas em atividade no país –, o festival consolidou uma reputação internacional absolutamente inédita. Basta lembrar que foi no Festival Amazonas de Ópera – sim, no “acanhado” Teatro Amazonas! – que ocorreu a histórica primeira produção brasileira do ciclo completo de O anel do nibelungo, de Richard Wagner.

Por tudo isso, é lamentável e bem pouco razoável a decisão do governo do estado do Amazonas em cancelar o Festival Amazonas de Ópera. Uma compreensão mais abrangente das influências e dos efeitos do Festival certamente evitaria o equívoco dessa decisão. Tem de haver uma solução de redução de gastos que viabilize pelo menos parte do festival e que mantenha acessa a chama da esperança e do futuro!

De minha parte, tenho certeza de que, sem o Festival Amazonas de Ópera, o estado do Amazonas dá um passo atrás em seu grande desafio civilizatório e de desenvolvimento social sustentável.

Teatro Amazonas, sede do FAO (Revista CONCERTO)
Teatro Amazonas, sede do FAO (Revista CONCERTO)

 

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Comentários

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Uma agressão para a arte, para a cultura e uma falta de respeito com os profissionais envolvidos! Eu como espectador estava para comprar a passagem e reservar o hotel! Mas agora não vou mais! Todos perdem com isso! Não dava para cortar de outra área? Ano eleitoral é sempre complicado!!!

Basta checar de quem o governador é "fiel escudeiro", fanáticos destrutivos sempre acompanham a estupidez daquele um inelegível.
Pesquisem lá a "folha corrida" desse talzinho!

Eu sou amazonense, e as comparações feitas aqui não condizem com a realidade. É louvável manter a orquestra, coral e fazer o festival. Mas sempre montado no gosto do diretor artístico, que sempre trás títulos não muito populares, operas que ninguém vai. Falou se da tetralogia. Eu lembro de ter assistido todas as operas daquele ano, e tinha dias com menos da metade da sala ocupada. O espetáculo dos tenores sempre tem casa cheia. Ou seja tem que equilibrar, repete-se sempre o mesmo artista, quando tem outros muito bons que demoram a voltar. Não vou citar nomes, pois pode sempre geral indisposição por parte da direção artística. Sem falar que as produções demoraram muitos anos pra serem coproduzidas. E fui pesquisar, na produção que está o maior gasto e não nos cachets dos artistas. Pergunto, pq antes de cancelar, não se revê esses gastos? E sinceramente, prefiro que invistam em escolas e saúde, do que no teatro, se o corte for inevitável.

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