Crônica de um desmonte anunciado

por Nelson Rubens Kunze 19/03/2021

A política cultural que a Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro vem implementando de forma autoritária – sem diálogo com o setor – desestrutura a Lei Rouanet e ameaça o funcionamento e a sobrevivência de valiosos equipamentos e iniciativas culturais

Uma coisa é a gente se opor a políticas liberalizantes que querem cortar recursos públicos da cultura, como temos visto – e reclamado! – nos últimos anos. Trata-se, contudo, de um debate de nossos dias, no Brasil e no mundo, que reflete sobre o papel do Estado para a manutenção dos equipamentos culturais e de suas agendas. Se há casos condenáveis de penúria de recursos públicos, as novas tendências nos obrigam a inventar e buscar modelos de financiamento alternativos, inclusive apoiados em experiências internacionais. É um debate político legítimo, permeado de ideologias, claro, mas é assim que os interesses públicos são ajustados e acomodados em uma sociedade civilizada e democrática.

Outra coisa, bem diferente, é o desmonte vil, deliberado e consequente que o governo Bolsonaro faz de todo o ecossistema cultural brasileiro. Se no âmbito das grandes questões nacionais o assunto fica um pouco de lado, é em razão da quantidade e gravidade das atrocidades criminosas engendradas pelo atual governo em tantas outras áreas – vide o que se passa com a saúde ou com o meio-ambiente. Tragédia!

Mas a cultura é desde sempre um dos alvos preferencias do projeto medievalesco de Jair Bolsonaro. Também aqui o presidente nunca escondeu as suas opiniões e vontades, eivadas de autoritarismo, ignorância e desprezo. Com seu português rudimentar e vulgar, atacou desde o início a “desgraça” da Lei Rouanet alegando que não passaria de uma mamata para artistas famosos. 

Vamos deixar claro: este país seria um deserto cultural se não houvesse a Lei Rouanet. Não é exagero: de mostras de teatro independente na periferia à Bienal Internacional de São Paulo, passando pela Osesp ou por qualquer outro equipamento que venha a sua cabeça, a grande maioria se vale de seus mecanismos de incentivo fiscal. Se houve com a Lei Rouanet, como em qualquer empreendimento humano, falhas pontuais, elas são absolutamente irrelevantes no cômputo geral de sua história (além de serem identificadas, punidas e sanadas pelos órgãos de controle). 

A Lei Rouanet é – ou era! – uma das legislações mais bem acabadas e funcionais do Brasil. Suas eventuais distorções, se as há, não podem justificar jogá-la simplesmente no lixo. Seu conceito é absolutamente correto e, apesar de ter sido criada no início da década de 1990 – já se vão trinta anos –, ela tem uma modernidade surpreendente ao responder às demandas de nossos dias. E não podemos nos esquecer de seu impacto econômico: conforme um estudo realizado pela FGV, cada R$ 1,00 captado e executado via a Lei Rouanet gera uma movimentação de R$ 1,59 na economia local. Ou seja, todos saem ganhando.

A Lei Rouanet é formada por um sistema baseado em três pilares complementares: um, o que conhecemos e identificamos propriamente com a lei e que é chamado de mecenato – o patrocínio privado de pessoa física ou jurídica que se vale de isenção fiscal; um segundo, chamado de Fundo Nacional de Cultura, ou FNC, que é uma reserva de recursos públicos para o fomento de atividades não comerciais e de pequeno potencial para captação de patrocínios; e um terceiro pilar, o Ficart, um fundo de mercado em que o investidor participa dos ganhos comerciais da atividade.

Nem tudo funcionou como devia, é verdade. O mecenato floresceu e significa hoje uma injeção de mais de R$ 1 bilhão por ano na área da cultura. O FNC, contudo, viu sua verba sempre contingenciada e o Ficart praticamente nunca saiu do papel. (Ainda assim, é bom lembrar que foram recursos “adormecidos” do Fundo Nacional de Cultura da Lei Rouanet que viabilizaram, no ano passado, a aprovação da Lei Aldir Blanc, inciativa da oposição no Congresso Nacional que destinou o valor inédito de R$ 3 bilhões para fazer frente às dificuldades impostas ao setor cultural pela pandemia.)

Em sua cruzada contra um suposto “marxismo cultural”, Bolsonaro extinguiu o Ministério da Cultura submetendo a nova Secretaria Especial da Cultura inicialmente ao Ministério da Cidadania e depois ao Ministério do Turismo. Na direção do novo órgão colocou pessoas despreparadas, para dizer o mínimo. Um dos episódios mais constrangedores desses tempos foi ver o então secretário Roberto Alvim fazer apologia explícita ao nazista Joseph Goebbels – Alvim foi tão longe que nem Bolsonaro foi capaz de mantê-lo no cargo. Hoje, o secretário é o ator Mario Frias.

Simultaneamente a episódios de hostilidade a artistas e menosprezo, boicote e censura de atividades culturais, a Secretaria demitiu ou substituiu quadros técnicos qualificados e especializados, e foi gradualmente travando procedimentos burocráticos triviais da Lei Rouanet. Com a desculpa de que há um enorme número de projetos cuja prestação de contas não está finalizada – um problema que se arrasta na pasta há muitas gestões –, o governo, ao invés de propor uma força tarefa ou modernizar os seus mecanismos para resolver o problema, assumiu a própria incompetência e, para não aumentar a fila, pasme!, promulgou uma portaria restringindo drasticamente a admissão de novos projetos. É como se o serviço público abrisse mão do serviço público.

O passo seguinte foi a decisão de atrasar a assinatura e posterior publicação no Diário Oficial de dezenas de projetos já analisados e aprovados pelas instâncias técnicas da Secretaria. O expediente bloqueou as tramitações e comprometeu a captação de recursos já negociados com patrocinadores. É inacreditável! Além disso, proponentes reclamam da dificuldade no atendimento, sem respostas a telefonemas e e-mails, e de problemas recorrentes no sistema digital que operacionaliza os processos.

No capítulo mais recente dessa novela sinistra, o capitão da Polícia Militar que é secretário de Fomento e Incentivo à Cultura da Secretaria publicou uma portaria que veda por 15 dias a análise de projetos que provenham de estados ou municípios que estiverem em “lockdown”. A portaria, além de bajular Bolsonaro, escancara uma intenção de provocação cínica, pois não há projeto apresentado que vá ser realizado em um prazo de 15 dias, uma vez que só o processo burocrático de tramitação via Lei Rouanet, em situação normal, já demoraria 90 dias. Segundo um comunicado divulgado pelo Conselho Federal da OAB, “a Portaria é ilegal e contraproducente, contribuindo com o acelerado processo de desmonte do setor cultural do País”.

A advogada especializada Cris Olivieri publicou um excelente artigo na revista Quatro Cinco Um (leia aqui), que apresenta com objetividade a gravidade dos fatos. Sua matéria conclui assim: “Uma Secretaria Especial de Cultura descompromissada com a criação de soluções para os profissionais e as empresas da cultura em tempos de crise já seria impactante, mas uma Secretaria Especial de Cultura que age deliberadamente para obstar que continue em vigor uma política de Estado existente, será avassaladora”.

A política cultural que a Secretaria Especial da Cultura do governo Bolsonaro vem implementando de forma autoritária – sem diálogo com o setor – desestrutura a Lei Rouanet e ameaça o funcionamento e a sobrevivência de valiosos equipamentos e iniciativas culturais. Os atos atingem em cheio o universo da cultura, como os projetos de música clássica e de ópera, que, por sua própria natureza, não podem prescindir do apoio e da subvenção pública.

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O secretário Mario Frias e o presidente Jair Bolsonaro (reprodução do Instagram)
O secretário Mario Frias e o presidente Jair Bolsonaro (reprodução do Instagram)

 

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Comentários

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Sem querer desconsiderar a atual situação da SECULT, que passa por dificuldades, sugiro que vejam o Acórdão do TCU 2.451/2019, item 1.8. Ele determina que a SECULT não aprove mais projetos do que as análises de presstação de contas que realiza. Um absurdo, que certamente intimida a atuação dos atuais gestores. Se não aprovam prejudicam o setor e descumprem a Lei federal. Se aprovam os seus CPF são processados pelo TCU. Maluquice total.

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Oportuno, claro e muito importante artigo de Nelson Kunze. Vamos compartilhar, pois é de fundamental interesse não só para artistas, produtores mas para toda a cadeia da cultura brasileira.

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Olá Temis Martins, obrigado pelo comentário. A SEC está justificando a redução da quantidade de projetos em tramitação dizendo que é uma imposição do TCU, e isso não é verdade. Como está bem detalhado no texto da advogada Cris Olivieri, que eu cito na matéria, “o TCU determinou também que fosse feito um estudo sobre a quantidade de projetos aprovados, sem qualquer determinação de redução ou bloqueio. Ainda assim, colocando a culpa nos órgãos de controle — responsáveis apenas pela supervisão e não pela gestão — a Secretaria Especial de Cultura publicou uma portaria reduzindo a quantidade de projetos analisados para seis por dia, ou 120 por mês. A redução significa a análise de apenas 1.440 projetos por ano, sendo que o volume de tramitação definido no Plano de Trabalho Anual para 2021, publicado pela própria Secretaria, é de 7.100 projetos”. É complicado...

Para sublinhar o impacto econômico da cultura em economias locais, lembro que o Festival de Inverno de Campos do Jordão injetou $16,7 reais na economia local para cada real investido e gerou ainda $3,16 reais em tributos arrecadados, em 2019. Isso é maior que alguns setores de indústria.

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Excelente, Nelson! A sociedade civil precisa mesmo se mobilizar contra o rumo perigoso que o Governo federal tem adotado. A aversão que esse Governo demonstra pela ciência e pela cultura não tem nada a ver com espectro político de uma direita liberal. Aliás, a real intenção política desse Governo (se já não esteve bastante clara nos discursos passados do atual mandatário) fica evidente, diante do recurso abjeto à vetusta “lei de segurança nacional”, usada para silenciar críticas à gestão desastrosa do atual Governo. Gestão desastrosa tanto no enfrentamento da questão sanitária, como na condução da política econômica. Mobilizemo-nos como nação, antes que o desmonte da cultura e a ruína da economia colapse, também, o estado de direito e a democracia.

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