Ao invés de ameaçar a autonomia da Fundação Padre Anchieta e propor uma CPI oportunista, o governo faria bem em buscar novas alternativas para um financiamento mais robusto da instituição
No dia 20 de abril passado, Roberto Muylaert, presidente da Fundação Padre Anchieta de 1986 a 1995 – e que na época definiu paradigmas para as emissoras públicas brasileiras –, escreveu artigo na Folha de S. Paulo chamando a atenção para a interferência do governo Tarcísio de Freitas sobre a autonomia da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV e Rádios Cultura (“TV estatal não funciona”). Muylaert traça um histórico das crises que a instituição já enfrentou, lembrando de governadores como José Maria Marin (1982-83), que tentou estatizar a FPA “na marra”, e Orestes Quércia (1987-91), que tentou escolher ele mesmo a direção TV Cultura, “tendo ficado muito bravo quando soube que o cargo de presidente da diretoria executiva nada tinha a ver com o governo do estado, mas com o Conselho Curador da Fundação”. Muylaert afirma que o que estamos vivendo agora “é a clássica revolta do governador, sem compreender como é possível liberar verbas públicas para serem utilizadas por uma emissora independente e de direito privado, dirigida por uma diretoria executiva e um conselho curador, ainda que auditados pelo Tribunal de Contas”. Em um segundo momento, segue Muylaert, a relação costuma ser positiva, com o governo entendendo que as coisas dessa maneira podem funcionar bem.
Criada pelo governo do estado e instituída por de lei estadual em 1969, a Fundação Padre Anchieta tem personalidade jurídica privada, mas sua natureza é pública. Ela é mantida com repasses orçamentários governamentais e também com recursos próprios captados na iniciativa privada, muitos com isenção fiscal. Além disso, a Fundação gera receitas com licenciamentos e serviços para terceiros.
As suas emissoras, a TV e Rádios Cultura, têm como objetivo oferecer uma programação de interesse público – educativa e cultural – , sem pressões comerciais ou político-partidárias. A independência político-partidária é justamente o que diferencia uma emissora de caráter público como a Fundação Padre Anchieta de uma emissora estatal diretamente ligada ao governo, que tem sua pauta dirigida pelos interesses do poder.
Para garantir a sua representatividade pública, a Fundação Padre Anchieta conta com um multifacetado Conselho Curador. Este é composto por 47 membros, entre eles autoridades do governo e de instituições (como secretários de Cultura do estado e do município, reitores das principais universidades paulistas, presidentes da Fapesp, da SBPC e da UEE) e 23 pessoas eleitas da sociedade civil “dentre personalidades de ilibada reputação e notória dedicação à educação, à cultura ou a outros interesses comunitários”.
Apesar de o modelo institucional da FPA ser simples e claro, a construção de uma emissora de caráter público com autonomia de programação e livre da ingerência da fonte de financiamento é um grande desafio. Mas há ótimos exemplos no mundo, como a PBS norte-americana ou a BBC inglesa. Conheço um pouco o modelo alemão, onde grandes emissoras públicas regionais são financiadas por taxas de televisão, patrocínios e também publicidade institucional – a preocupação sempre é a de blindar o financiamento dos interesses político-partidários. Essas emissoras alemãs ainda mantêm onze (!) orquestras sinfônicas de grande qualidade (Bayerischer Rundfunk Sinfonieorchester, Rundfunk Sinfonieorchester Berlin, NDR Elbphilharmonieorchester, MDR Sinfonieorchester Leipzig e a hr Sinfonieorchester para citar apenas cinco).
Mas há ainda outro texto importante em defesa da Fundação Padre Anchieta, publicado alguns dias depois pela professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap (e também membro do Conselho Curador da FPA), Maria Hermínia Tavares (“Uma TV pública que não pertence ao estado nem serve a governos”, Folha de S.Paulo, 24/04/2024).
Tavares afirma que “criar organizações públicas não estatais, capazes de sobreviver até às grandes reviravoltas da política, foi ingrediente indispensável da pujança científica e cultural paulista” e cita como exemplo a Fundação Padre Anchieta (além da Fapesp, das universidades paulistas e da Osesp).
O artigo de Tavares alerta para a proposta de criação da CPI da Fundação Padre Anchieta, iniciativa do Movimento Brasil Livre (MBL) junto com o deputado estadual Guto Zacarias (União Brasil), vice-líder do governo na Assembleia Legislativa de São Paulo. Zacarias sustenta que há falhas na condução orçamentária da Fundação e quer anular a eleição de conselheiros sob o argumento de que o estatuto da instituição teria sido desrespeitado. Tavares, por sua vez, afirma que a CPI não tem propósito definido e “se baseia em vagas acusações de mau uso de recursos públicos, quadro de funcionários balofo, eleições fraudadas”.
A nova investida para a criação desta CPI se junta a uma tendência política neoliberal, que há anos pressiona a FPA a cortar gastos e a aumentar as receitas próprias. Ao invés de atacar a autonomia da instituição, o governo faria bem em buscar novas alternativas para um financiamento mais robusto da Fundação.
É necessário defender o caráter público – educativo e cultural – da Fundação Padre Anchieta bem como a sua autonomia, para assim fortalecer uma das instituições mais valiosas e importantes do Brasil. É lamentável que visões equivocadas e manobras políticas ameacem este modelo de serviço público de comunicação de qualidade. Oxalá chegue logo o segundo momento previsto por Muylaert e o governo compreenda o inestimável valor de uma emissora pública como a Fundação Padre Anchieta!
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Comentários
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Confio nas cabeças pensantes…
Confio nas cabeças pensantes existentes em São Paulo e que têm poder, para colocar essas pessoas em seu devido lugar.
Fui Conselheiro da Fundação…
Fui Conselheiro da Fundação Padre Anchieta por dois mandatos, na gestão do saudoso Jorge da Cunha Lima. As pressões do Governador e de sua equipe se fizeram sentir em várias ocasiões no período, e sempre foi importante a reação do Conselho e, particularmente do seu Presidente. Recomenda a leitura do livro O Desafio da TV Pública que aborda o tema.