Coleção idealizada pelo Ministério das Relações Exteriores e lançada no mundo pelo selo Naxos revela tesouros da música brasileira de concerto
O país que mais se orgulha de sua música popular finalmente resolveu descobrir para si mesmo – e revelar para o mundo – sua produção de concerto. Contando com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Filarmônica de Minas Gerais e a Filarmônica de Goiás, a série A Música do Brasil chega neste mês ao número de 13 discos, distribuídos internacionalmente pelo selo Naxos.
A largada foi dada pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, em 2019, com um CD dedicado a Alberto Nepomuceno (1864-1920) regido por Fabio Mechetti, que imediatamente chamou a atenção da crítica internacional: a BBC Music Magazine qualificou o álbum como “inspirador”.
De lá para cá, o cânone brasileiro vem sendo amplamente explorado, sempre com uma recepção calorosa: o volume 7, em que Emmanuele Baldini (violino) e Pablo Rossi (piano) tocam sonatas de Villa-Lobos, acaba de ser indicado para o Grammy Latino. E o álbum mais recente, em que a Filarmônica de Minas Gerais toca obras de d. Pedro I, ganhou elogios da revista Gramophone – não apenas à música (o Te Deum é saudado como obra de “tremenda exuberância”), mas também à performance (“a direção orquestral segura de Fabio Mechetti”) e à qualidade técnica (“o som gravado, capturado na Sala Minas Gerais, em Belo Horizonte, é exemplar”).
O projeto
A Música do Brasil pertence a um projeto maior do Ministério das Relações Exteriores, o Brasil em Concerto, que visa a promover e divulgar internacionalmente a música de nossos compositores. A iniciativa partiu do diplomata e compositor Gustavo de Sá, chefe do setor cultural da embaixada do Brasil em Lisboa. No fim de 2016, ele era chefe da Divisão de Ações de Promoção da Cultura Brasileira. E ficou encantado com um álbum em que a Filarmônica de Goiás, regida por Neil Thomson, executava três peças orquestrais de Guerra-Peixe (1914-93): A retirada da laguna, Concertino para violino e pequena orquestra (com solo de Abner Landim) e Museu da Inconfidência. “Eu mal podia acreditar na qualidade do disco: era uma orquestra do interior do país, da qual ninguém tinha ouvido falar, e mesmo no meio não era muito conhecida”, relembra Sá.
A pianista Sonia Rubinsky, que gravara a integral de Villa--Lobos para a Naxos (e depois participaria da série com uma gravação de peças para piano e orquestra de Almeida Prado, com a Filarmônica de Minas Gerais), fez a ponte com o selo.
E a Naxos foi o parceiro certo. “Quando eu era jovem, o Brasil era a terra dos meus sonhos e eu estava planejando emigrar e morar lá”, conta Klaus Heymann, fundador e presidente do Naxos Music Group. A ideia de viver no Brasil não vingou, mas o interesse pelo país permaneceu. “A música brasileira tem que ser mais ouvida no mundo. Os editores de música que controlam as obras dos principais compositores têm que fazer um esforço maior para que a música seja executada. E precisamos de mais músicos brasileiros de nível internacional que possam ajudar a promover a música do país”, afirma Heymann, que abraçou o projeto da Música do Brasil desde o primeiro momento.
De suas tentativas anteriores de fazer obras brasileiras serem programadas fora do país, Gustavo de Sá sabia que a ausência de registros e partituras eram os principais obstáculos: “Havia poucas e péssimas gravações, e as partituras estavam em manuscrito, ou em xerox, ou eram edições ruins”, enumera.
Daí veio a ideia de que o Itamaraty agisse como coordenador da iniciativa, organizando a relação entre orquestras, Naxos e as edições das partituras pela Academia Brasileira de Música e Musica Brasilis. “Uma instituição sozinha não consegue fazer muita coisa”, afirma Sá. “Cabe ao ministério a articulação entre o meio cultural brasileiro e a indústria externa para a divulgação no exterior.”
Sá explica que o ministério não contratou as orquestras, mas propôs uma parceria, arcando com as despesas de gravação. “As orquestras absorvem esse repertório em suas temporadas. Assim, para produzir ação externa, acabamos criando impacto interno. Colocamos essa música no repertório das orquestras brasileiras, para rodar dentro do país. Muitas delas estão estreando.”
Repertórios
Mesmo no repertório consolidado, havia trabalho a ser feito. Gustavo de Sá cita o disco com aberturas e trechos orquestrais das óperas de Carlos Gomes (1836-96) com regência de Fabio Mechetti que a Filarmônica de Minas Gerais lança em março do ano que vem. “Quando incluímos na lista, pensamos: mas não é mainstream demais? Só que não se acha uma gravação integral hoje – as gravações são antigas, não se encontram em plataforma digital. Também não havia edição das obras. Todas as orquestras tocavam com xerox de material antigo. Não havia edição moderna dessa música.”
Do mais conhecido compositor brasileiro no mundo, Heitor Villa-Lobos, a coleção já conta com alguns importantes registros. O coro da Osesp, com regência de Valentina Peleggi, gravou um álbum com suas transcrições para coro. Já a Osesp, sob regência de Giancarlo Guerrero, registrou o Concerto para violão, com Manuel Barrueco, e o Concerto para harmônica, com José Staneck (o mesmo que a Osesp acaba de apresentar em sua turnê norte-americana). Além disso, está programado para maio, também com a Osesp, o lançamento dos concertos para violoncelo com Antonio Meneses.
Ainda assim, Gustavo de Sá afirma que, embora presente, Villa-Lobos foi “propositadamente negligenciado” em prol das lacunas maiores. “A decisão sempre coube à direção artística das orquestras. Praticamente não houve conflito.”
Assim, a Osesp gravou também dois CDs dedicados a Camargo Guarnieri. No primeiro, Isaac Karabtchevsky comandou a gravação da Seresta para piano, com Olga Kopylova, mais os Choros para violino (com Davi Graton), flauta (com Cláudia Nascimento) e fagote (com Alexandre Silvério). O segundo volume, sob direção de Roberto Tibiriçá, contém os Choros para clarinete (com Ovanir Buosi), para piano (com Olga Kopylova) para viola (com Horácio Schaefer) e para violoncelo (com Matias de Oliveira Pinto), além da obra avulsa Flor de Tremembé.
O álbum que está saindo neste mês traz a Filarmônica de Goiás sob a regência de Neil Thomson interpretando as Sinfonias nº 11 e nº 12 de Claudio Santoro (1919-89), além do Concerto grosso para quarteto de cordas e orquestra e dos Três fragmentos sobre Bach.
“Quando cheguei ao Brasil para assumir a filarmônica, quis conhecer os compositores do país”, conta Thomson, britânico que é diretor artístico e regente titular da Filarmônica de Goiás desde 2014. “Amigos meus me passaram listas de escuta. Ao ouvir o CD de John Neschling e a Osesp com as Sinfonias nº 4 e nº 9 de Santoro, disse para mim mesmo: meu Deus, é uma música com a qual eu posso me conectar! E decidi que queria gravar suas 14 sinfonias – uma decisão instintiva e impulsiva, pois nem tinha ouvido todas, algumas nunca foram gravadas e outras estamos até estreando.”
Thomson segue: “Sou interessado no começo da carreira desses compositores, Santoro e Guerra-Peixe, da música de quando eles eram alunos de Koellreutter, não só da fase nacionalista. E Santoro não tem limites. Sua Sinfonia nº 1, por exemplo, tem algo de Hindemith, mas já soa com voz própria. As obras de sua fase final possuem elementos eletrônicos. Ele tem a gama estilística mais ampla, estava sempre buscando. Quando saiu o disco com as Sinfonias nº 5 e nº 7, alguns amigos estrangeiros disseram: ‘Bem, é o que esperávamos, música que tem a ver com Shostakovich, Carlos Chávez etc’. E eu lhes disse: esperem para ouvir a Sinfonia nº 8 ou a nº 11 – em 17 minutos, ele realiza tudo o que Shostakovich levaria 50 minutos para fazer. Santoro nunca é prolixo, não desperdiça uma nota. Ele tem uma enorme energia emocional. Sua Sinfonia nº 11 é muito exigente tecnicamente – o pico da escrita sinfônica”.
Thomson também dirigiu o disco em que a English Chamber Orchestra tocou obras de Miguez, Nepomuceno, Francisco Braga e Carlos Gomes. Ele conta que o idioma musical brasileiro do século XIX surpreendeu os ingleses. “Quando você fala em música brasileira, espera-se algo entre samba e bossa nova. Ficaram encantados. É bem escrita”, diz.
Em julho do ano que vem, sai o álbum em que Thomson e sua orquestra continuam a integral de Santoro, com a Sinfonia nº 8 e o Concerto para violoncelo, com solo de Mariana Martins. Em setembro, o CD dedicado a Edino Krieger: Fanfarras e sequências, Variações elementares, Ludus Symphonicus, Canticum naturale, Estro harmônico e Três imagens de Nova Friburgo. E, em novembro, um disco em que ele rege a Osesp com criações de Almeida Prado: Sinfonia dos orixás e Pequenos funerais cantantes.
Com a Osesp, Neil Thomson deve gravar, ainda, um álbum dedicado a Aylton Escobar, que completa 80 anos em outubro de 2023. Já em Goiás, após concluir o ciclo de Santoro, a ideia é gravar a integral sinfônica do paraibano José Siqueira (1907-85). “É um compositor muito interessante e ainda menos conhecido que Santoro”, diz. Thomson é favorável a imersões em ciclos de compositores: “Hoje, a Filarmônica de Goiás sente-se absolutamente em casa em Santoro e sabe o que fazer na música dele”.
Dos românticos ao século XXI
Diretor artístico e regente titular da Filarmônica de Minas Gerais, Mechetti tem explorado intensiva, mas não exclusivamente, o repertório do século XIX na série A Música do Brasil. Além dos álbuns já dedicados a Nepomuceno e Carlos Gomes, a orquestra neste ano gravará as sinfonias de Henrique Oswald (1852-1931). “Ainda não tive acesso à Sinfonia nº 2”, conta o maestro. “A primeira é bonita, romântica, tem um certo quê de César Franck, de Saint-Saëns. Os compositores brasileiros dessa época eram capazes de bonitas melodias.”
Para o começo de 2024, está previsto o lançamento de um disco já gravado pela orquestra, com as duas sinfonias de Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948). “Dele se conhece bem o Batuque, mas não as sinfonias. Era um compositor com diversos recursos, conhecia muito bem orquestração. E não são necessariamente obras de todo nacionalistas, como seria de esperar”, pontua Mechetti.
Em fevereiro do ano que vem, ele grava um disco com obras de Ronaldo Miranda, que completa 75 anos em abril. “Estou bem contente com minha inclusão na série da Naxos sobre a música brasileira, com um CD dedicado a minha produção sinfônica”, diz Miranda. “O repertório incluirá Variações temporais (Beethoven revisitado), Horizontes e minhas duas obras para piano e orquestra: o Concertino para piano e cordas e o Concerto para piano e grande orquestra. Eu, Fabio Mechetti e Gustavo de Sá escolhemos como solista o pianista Eduardo Monteiro, grande intérprete do teclado. Ele já tem meu Concertino em seu repertório e estreará o Concerto nesse belo projeto fonográfico.”
Em janeiro do ano que vem, A Música do Brasil deve lançar um disco com as Fantasias Sul América, de Santoro, tocadas por solistas da Osesp. Outro lançamento que está no calendário é a integral de sonatas para piano solo do compositor, na interpretação de seu filho, Alessandro Santoro. Ainda vem por aí o Francisco Mignone (1897-1986) da Osesp, que gravou em agosto deste ano o Concerto para violino e os concertinos para clarinete e fagote do compositor, sob regência de Giancarlo Guerrero e com solos de Emmanuele Baldini, Ovanir Buosi e Alexandre Silvério.
Pelas contas dos envolvidos, o projeto tem fôlego para se estender por mais uns sete ou oito anos. Repertório de qualidade não falta.
para ouvir
As gravações da coleção A Música do Brasil podem ser ouvidas no Spotify e em outras plataformas de streaming.
Os CDs podem ser adquiridos na Loja CLÁSSICOS, em www.lojaclassicos.com.br