A voz de Paulo Szot, mesmo falada, mesmo pelo telefone, parece envolver o interlocutor numa aura de conforto e maciez. O barítono, mais conhecida figura brasileira dos palcos líricos internacionais da atualidade, está em Paris, onde vive Don Alfonso, o cínico “filósofo” manipulador da genial Così fan tutte, de Mozart-Da Ponte.
A montagem no Palais Garnier, que estreou dia 10 de junho, segue até 9 de julho e é um repeteco da temporada de 2017. Do elenco original, só Szot está de volta, agora dividindo o palco com Vannina Santoni, Angela Brower, Hera Hyesang Park, Josh Lovell e Gordon Bintner. A direção é da coreógrafa Anna Teresa de Keersmaeker – que inclui muito movimento na encenação, com participação da sua Cia. Rosas – e a regência, do espanhol Pablo-Herreras Casado.
“O Garnier tem tudo a ver com Mozart. E essa ópera tem a mais linda música, com conjuntos impressionantes”, diz Paulo. Essa opinião é bem prevalente entre músicos e críticos, que consideram a partitura de Così uma intrincada e genial teia de árias, duos, trios, quartetos, sextetos. A ópera fez sua estreia em 1790, em Praga. O libreto bem-humorado continua divertindo as plateias. “É mesmo uma obra-prima”, reforça Paulo Szot, que recebeu elogios da crítica francesa (“sólido e robusto, tem projeção segura, com seu registro poderoso mas sutilmente dosado para não se exceder nos conjuntos, com pianíssimos delicados”, diz o site Olyrix).
Delicadeza e robustez não são características que costumam andar juntas. Mas Paulo tem a seu favor a versatilidade que a vivência em diversos palcos proporcionou. Há 14 anos, desafiava as previsões de gente muito conservadora ao aceitar o papel de Emile de Becque, na remontagem de South Pacific, musical de Rodgers e Hammerstein, na Broadway novaiorquina.
“Houve quem predissesse o fim da minha presença na ópera”, lembra ele. “Mas acabou sendo o evento que mudou minha carreira para muito melhor. Segui minha intuição e fui disposto a fazer um bom trabalho.” Mais do que “bom”, o papel deu a ele o mais prestigioso prêmio do teatro americano, o Tony, em 2008, como melhor ator de musicais. E a carreira no mundo lírico ganhou novo impulso, com estreias no Metropolitan (como a da dificílima The Nose, de Shostakovitch, em produção do sul-africano William Kentridge, em 2010) e compromissos no mundo todo.
A ousadia de estrelar um musical ele define como “salto no escuro” – apesar de o papel ter sido escrito originalmente para o baixo italiano Ezio Pinza. “Mas o Pinza já tinha carreira consolidada, ali não arriscava nada. De novo, eu sempre quis ser um artista que contasse histórias relevantes. E, incrivelmente, South Pacific traz temas atuais, como o racismo.”
Outra vertente da interpretação que Paulo abraçou ao longo dos últimos anos foi o palco íntimo, a música de cabaré, interpretando canções brasileiras e universais em casas como 54 Below e o Carlyle, em Nova York. Delicadeza e robustez, afinal.
Desde 2022, Paulo está no elenco de &Juliet, do autor do seriado Schitt’s Creek David West Read, em cartaz no teatro Stephen Sondheim, na Broadway – ele volta à cena em 16 de julho, ao final de Così em Paris. O musical jukebox (que utiliza canções já compostas) parte da premissa: “e se Julieta de Shakespeare não tivesse morrido?”. É, diz Paulo, “uma comédia de altíssimo nível, que o público ama”. Há poucos dias, noticiou-se que todo o investimento no espetáculo foi recuperado, coisa rara na Broadway dos dias atuais. Ele também fez Billy Flynn em Chicago, com interrupções na pandemia – hoje, a mais longeva peça em cartaz no distrito teatral novaiorquino. No Brasil, atuou nas montagens paulistanas de Chicago (2022) e em My Fair Lady (2016).
Aliás, São Paulo tem visto e ouvido Paulo com alguma constância – ao menos nos palcos de concerto. A última ópera que cantou no Brasil foi La Traviata, com direção de Jorge Takla, em 2018, no Municipal, mas a Osesp o recebe com frequência: foi seu artista residente em 2019 e abriu a temporada 2024 como um dos solistas da Missa em dó Maior de Beethoven, entre outras aparições na Sala São Paulo. No Rio, há muitos anos não se apresenta. “E eu ia fazer Simon Boccanegra no Festival Amazonas desse ano, que foi cancelado, uma enorme tristeza.”
Entre os planos desse ano estão ainda uma Carmen em concerto com a Sinfônica de Detroit e um Otelo com Roberto Alagna em Porto Rico. “Cantamos uma Bohème em 2022 e vamos repetir o encontro.”
Mas o projeto mais aguardado de 2024 para o barítono, ao que parece, é o reencontro do elenco de South Pacific, marcado para 9 de dezembro. “Vamos fazer em forma de concerto no mesmo palco, o Vivien Beaumont, no Lincoln Center, e depois o Met Opera vai oferecer um jantar. Vai ser muito emocionante.”
Paulo faz 55 anos dia 7 de julho com a voz “velvet-like” (como já foi classificada) em grande forma e com a bela figura em dia. “Manter a desenvoltura vocal exige constante treino”, diz. “Vocalises diários, bom sono e hidratação. Mas, acima de tudo, respeitar meu corpo como um todo. Hoje em dia canto alguns papéis de Verdi, alguns do verismo, mas nunca abandono a canção e Mozart.” O que vem ainda por aí? “Não sei sobre o futuro, eu geralmente espero chegar a proposta e avalio. Mas saber se determinado papel encaixa bem na voz, é só fazendo no palco mesmo.”
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