‘Don Giovanni’ em versão circense: menos ‘dramma’, mais ‘giocoso’

por Nelson Rubens Kunze 08/05/2025

Com direção de Roberto Minczuk e Hugo Possolo, montagem tem boa fluência e realização musical, mas sacrifica completude orgânica do original

Pelo menos desde a década de 1970, com o advento do “Regietheater”, óperas ganharam encenações que deslocaram suas histórias no tempo e no espaço. Tristão e Isolda, de Wagner, em campo de concentração ou La bohème, de Puccini, em uma nave interplanetária – a imaginação não tem limites. De vez em quando, de fato, é bem problemático. Mas muitas vezes essas encenações jogam novas luzes interpretativas que potencializam a obra de arte original. Aliás, novas compreensões e o desvendamento de novas camadas interpretativas é algo próprio de obras de arte – se isso funciona para uma pintura ou para uma obra literária, o que dizer da ópera, que necessariamente é criada sempre de novo aqui e agora?

Assim, não há problema em propor um Don Giovanni circense, como o fez Hugo Possolo na nova produção da obra-prima de Mozart pelo Theatro Municipal de São Paulo. Talvez até o título poderia se adequar bem a isso, por sua natureza de dramma giocoso e suas raízes na antiga commedia dell’arte italiana. Ainda mais considerando que a peça, que serviu de base para o libreto de Lorenzo da Ponte, é o Don Juan de Molière, mestre da comédia satírica do século XVII.

Possolo adaptou o texto e incluiu trechos do original de Molière, em diálogos falados em português, que substituíram os recitativos acompanhados ao cravo do original (diferentemente de um Singspiel, em que entre as partes musicais há diálogos, Don Giovanni é ópera com recitativos). Com isso, porém, a montagem ganhou ares de teatro falado intercalado pela música de Mozart, sacrificando a completude orgânica da obra original. E ao realçar o cômico, a ópera perdeu parte da força do dramática que conduz a narrativa.

Possolo é hábil na direção do espetáculo, que tem fluência e diverte. A produção faz bom uso dos elevadores do palco, criando ambientações que facilitam a movimentação dos artistas. A montagem está recheada de elementos circenses bem como de mágicas, malabarismos e acrobacias. Como o diretor escreve no programa, “a encenação, com declarado espírito circense, traz a mágica como jogo de ilusões, buscando revelar como o poder masculino manipula todas e todos para que atendam a seu desejo”.

Contudo, se Possolo usa o riso e o humor para iluminar a tragédia, os seus diálogos – alguns de excessivo tom didático e algumas platitudes – eventualmente empobrecem uma questão que no original traduz uma complexidade muito maior. Nesse ponto, prefiro a ideia do artigo de Roseana Borges, também publicado no programa: “Mas, seguindo a trilha de Kierkegaard e de Jacques Lacan, é recomendável afastar Don Giovanni do território moralizante de onde irradiaram análises aos borbotões. De acordo com esses dois autores, a ópera de Mozart vai além da moral porque, ao contrário da peça de Molière (em virtude do seu estatuto textual), a obra musical incide sobre o próprio desejo de Don Juan e a sensualidade desse desejo: ‘Eu aprendi com a música que apenas ela pode exprimir Don Juan’, disparou o filósofo existencialista”. 

É verdade. É preciso apostar e acreditar na música, pois ela é quem melhor exprime a força dos desejos humanos e toda simbologia da figura arquetípica de Don Juan.

Foi muito boa a realização musical levada a cabo pela Orquestra Sinfônica Municipal e pelo Coro Lírico do Theatro Municipal de São Paulo. A regência coube ao titular Roberto Minczuk, que conduziu o espetáculo com verve, bom ritmo e espírito mozartiano. Mozart sempre surpreende com sua música, que vai das árias aos concertatos com uma naturalidade e beleza desconcertantes (acho que por aí perto mora o sublime...).

Contribuiu para o sucesso da realização o bom elenco (récita do dia 6 de maio): Homero Velho fez Don Giovanni com grande competência, tanto vocal quanto cênica, bem acompanhado pelo ótimo Leporello de Saulo Javan. Ludmilla Bauerfeldt se destacou com bonita e clara voz como Donna Anna. Também o restante do elenco esteve bem equilibrado em uma formação vocal muito feliz: Jabez Lima como Don Ottavio, Monique Galvão como Donna Elvira, Raquel Paulin como Zerlina, Rogério Nunes como Massetto e Sérgio Righini como comendador.

Para finalizar, achei uma pena que no fim da ópera Don Giovanni não pague pelos seus pecados queimando nas chamas do inferno. Possolo escreve no programa: “Deixamos de lado aqui a ideia do castigo de arder em chamas do inferno, fugindo da carga religiosa, moralista e patriarcal, para voltarmos à metáfora original da obra que petrifica Don Giovanni para levá-lo à prisão, onde, sem perdão, encontrará a morte, material e palpável, que é o que criminosos merecem”.

Está certo, criminosos merecem prisão. E aceito também que queimar no inferno carregue uma “carga religiosa, moralista e patriarcal”. Mas, em que outro lugar senão na ópera a gente pode se regozijar em ver o crápula ardendo nas brasas do inferno? Eu, por meu lado, conheço algumas pessoas que, melhor do que presas pelos crimes que cometeram, adoraria ver queimando nas chamas do inferno...

[Ainda haverá récitas de Don Gionvanni até o dia 10 de maio – clique aqui para mais detalhes do Roteiro Musical.]


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Cena de Don Giovanni, produção do Theatro Municipal de São Paulo (divulgação, Larissa Paz)
Cena de Don Giovanni, produção do Theatro Municipal de São Paulo (divulgação, Larissa Paz)

 

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