Sagarana não é só lenda e Matraga não é só ópera

 Matraga, de Rufo Herrera e Rita Clemente, une canto, dança e atuação em supermontagem no Palácio das Artes. Não é uma ópera – e tudo bem

Sagarana é mistura de Saga com rana. Saga quer dizer lenda; rana, semelhança. Saga tem origem germânica, e rana, tupi. Sagarana significa: parecido com uma lenda. O título do primeiro livro de Guimarães Rosa encapsula a proposta estética do autor: é uma literatura que, ao mesmo tempo em que emerge das particularidades do sertão, não deixa de dialogar com temas universais. Guimarães parte de dentro da realidade brasileira para fora, num encontro com sua representação mais poética e transcendente. 

O neologismo Sagarana também anima considerações sobre o Matraga de Rufo Herrera, e não só pelo conto que o inspira (A hora e vez de Augusto Matraga, que fecha o livro do escritor mineiro). Matraga não é ópera – é parecida. Na verdade, é um espetáculo cênico-musical. A obra se assemelha mais às criações de Hanns Eisler e Bertolt Brecht (a título de exemplo, ver A decisão), do que a um Puccini ou um Carlos Gomes. 

O que quer dizer isto? Que a música cede mais espaço ao texto, e que as passagens cantadas são poucas, em comparação à ópera tradicional. A música, interpretada pela Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, regida por Ligia Amadio, pontua as falas, sublinha inflexões, representa os humores dos personagens e as tensões das cenas. Tudo muito bem-vindo.

A música que deu suporte ao canto e a cena não veio só do fosso. Em cima do palco, o violeiro Chico Lobo acompanhou a narração de Gilson de Barros e transformou em repente as melodias cantadas pelo personagem Quim Recadeiro, interpretado pelo tenor Geilson Santos, num diálogo estreito e íntimo com os rumos do conto.

É bonito colocar frente a frente a obra de Rufo Herrera e a de Guimarães Rosa, porque ambos adotam postura inquieta diante dos gêneros que têm à frente, seja com papel e palavra ou com partitura e som. Herrera mexe com a ópera, Guimarães mexe com o conto. Herrera mistura Miserere e Benedictus com baião, Guimarães mistura o vocabulário e o cancioneiro sertanejos com a narrativa épica. É ótimo.

Mas não é tão simples assim como está descrito. Há cuidado de Herrera ao citar melodias sacras. Um exemplo está na música da cena mais bonita do espetáculo, no primeiro ato: é quando Dionóra (trazida à vida pela soprano Edna d'Oliveira) chora os desvios do marido, Augusto Matraga, tomando coragem para fugir com sua filha e com Ovídio, seu amante (cantado pelo barítono Leandro Abreu). Vem a parte feminina do Coral Lírico de Minas Gerais (preparado por Augusto Pimenta e André Brant) pontuar esse sofrimento junto com Dionóra, entoando o Miserere. O coro diversas vezes encarna a voz coletiva, à maneira do teatro grego. De novo, Eisler/Brecht, ou até mesmo Weill/Brecht, nos servem de referência. 

Há bastante passagens atuadas. Para começo de conversa, perceba-se que Augusto Matraga, personagem principal do conto (nosso Odisseu às avessas?), não é cantor, é ator. Quem deu voz e corpo a ele foi Leonardo Fernandes, para muito gosto do público. E aqui cabe um estendido elogio à preparação de Rita Clemente, diretora cênica, e Ronaldo Zero, assistente de direção, que guiaram tanto atores quanto cantores muito bem. Resultado disso é o contracenar sem ruídos que ocorre, por exemplo, entre Matraga e Mãe Quitéria, cantada pela mezzo soprano Edineia Oliveira. 

Cena da ópera 'Matraga', apresentada no Palácio das Artes de Belo Horizonte [Divulgação/Paulo Lacerda]
Cena da ópera 'Matraga', apresentada no Palácio das Artes de Belo Horizonte [Divulgação/Paulo Lacerda]

 

Outra camada, além do canto e da atuação, se soma ao espetáculo: o balé, que muitas vezes roubou a cena, acrescentando poesia à montagem. A coreografia (dirigida por Alex Soares) das duas grandes brigas da narrativa – uma entre Major Consilva, seus capangas e Matraga, que perde; e a outra entre Joãozinho Bem-Bem e Matraga, que ganha – contou com a Companhia de Dança do Palácio das Artes levando e trazendo movimento. 

Além disso, a coreografia, quase sempre presente em cena, em momento algum atrapalhou a música – é uma tendência que os movimentos dos bailarinos se sobreponham à orquestra ou ao canto. Só havia ruído quando fazia sentido: um exemplo, recorrente na montagem, era o movimento de “pisar” que os personagens empregavam em cena. O passo, duro, pontuava a entrada da orquestra.

Falando em poesia, a iluminação e a cenografia (Gabriel Pederneiras e Miriam Menezes) presentes no palco foram tão inspiradas quanto a descrição que Guimarães Rosa faz do poente e do nascer do sol no conto, com uma grande árvore seca recortando um fundo ora alaranjado, ora avermelhado. Talvez o trecho mais bonito, nesse sentido, tenha sido aquele em que Joãozinho Bem-Bem, interpretado pelo tenor Flavio Leite, aparece no fundo do palco, rodeado por luz vermelha e abundância de sombras: um quadro. Coroa o aspecto visual desta montagem o figurino de Sayonara Lopes.

É raro ver uma superprodução como a que está sendo encenada no Palácio das Artes, sobretudo colocando sob o holofote uma criação totalmente brasileira (Rufo Herrera é argentino, mas está no Brasil desde os anos 60), e ainda mais pela segunda vez. O esforço de todos os corpos estáveis se prova superlativo, numa existência que se impõe pela arte. A manutenção desses grupos torna-se, por isso, necessária e indispensável – a afirmação é óbvia, mas não custa lembrar. O círculo se completa na aposta acertada de celebração e valorização da literatura mineira, acrescentando perspectivas a obras imensas em importância, como é a de Guimarães Rosa.

Cena da ópera 'Matraga', apresentada no Palácio das Artes de Belo Horizonte [Divulgação/Paulo Lacerda]
Cena da ópera 'Matraga', apresentada no Palácio das Artes de Belo Horizonte [Divulgação/Paulo Lacerda]

 

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