Um bom momento para a ópera no Rio Grande do Sul

Montagem de Carmen é evidência de que há um acúmulo de conhecimento e um aproveitamento dos investimentos que retroalimentam e estabelecem em Porto Alegre tanto uma cultura de produção quanto uma nova plateia

A cena operística de Porto Alegre vive um momento bastante importante, e evidências não faltam. Nos dias 6 e 7 de abril, a Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul, a Cors, levou ao palco do Theatro São Pedro a reprise da montagem de Carmen, de Georges Bizet, que havia apresentado em novembro de 2023 também em duas récitas. Mesmo que agora fosse uma versão já conhecida, mas desta vez sem orquestra e com algumas atrações a menos, expressa a concretude de que algo bastante interessante se processa na capital do Rio Grande do Sul.

É inegável que está sendo estruturado um sistema desde que a ópera tomou novo fôlego na cidade com a retomada das montagens cênicas anuais pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Ospa, com Don Pasquale, de Gaetano Donizetti, em 2016. Naquele momento, se sonhava com a remoção de uma parede não estrutural que havia sido colocada anos antes no fosso de orquestra da mais tradicional casa de espetáculos da cidade, o São Pedro. Esse obstáculo foi removido e, aos poucos, os conjuntos puderam ocupar seu lugar e muitos foram os outros passos que nos levaram à realidade presente, que inclui palavras como ‘reprise’ e ‘temporada’. 

Ambas as expressões estão incorporadas nos anúncios da Cors para 2024, por exemplo. Fundada há dois anos como um coletivo de cantoras e cantores líricos cujo fim é movimentar a produção operística local, a companhia anunciou uma temporada que, após esta recente reprise de Carmen, segue com uma gala lírica em maio, uma montagem inédita de O elixir do amor em quatro apresentações em junho e A flauta mágica em julho. Mais relevo ainda ganha este momento se considerarmos que também inclui apresentações em outras cidade, Dois Irmãos e São Leopoldo. Ora, é muita coisa o fato de uma companhia tão recente já operar com uma lógica de repertório, temporada e circulação.

Há muito tenho a convicção de que ópera é sempre capaz de gerar encontros potentes. Se pensarmos no gênero em si, temos uma combinação entre a composição e o libreto; já a performance só é completa se reunir canto, orquestração, atuação, concepção cênica, iluminação, figurino e tantas outras coisas quanto se possa imaginar: dança e arte circense, por exemplo; na cidade sulina, o que tem se processado, além disso, é um encontro entre instituições e pessoas, que gera aprendizados e resultados muito potentes. 

E se esses encontros já apareciam nos projetos operísticos levados à cena pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a Cors tem seguido nesse rumo: já realizou montagens com a Ospa e a Orquestra Theatro São Pedro; passou a ter sede no Multipalco Eva Sopher, para ensaios e apresentações; e atua no Ópera Estúdio, projeto de formação de artistas levado adiante pela Ospa e pela Secretaria de Estado da Cultura do RS com apoio da Fundação Theatro São Pedro. Só uma verdadeira rede atuando em consonância é capaz de fazer funcionar um sistema necessário para um gênero de espetáculo tão completo e complexo.

Enfim, rever a montagem de Carmen é evidência de que há um acúmulo de conhecimento e um aproveitamento dos investimentos que retroalimentam e estabelecem em Porto Alegre tanto uma cultura de produção quanto uma plateia habituada a estar nesses espetáculos e apreciá-los. A escolha da famosa composição de Bizet com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy é, por isso, uma oportunidade para o público local ter contato com uma das obras mais populares do repertório internacional. Tanto é que ela é incluída no que se costuma chamar de o “ABC” básico de qualquer companhia.

A proposta cênica, dirigida por Carlos Rodriguez, não é uma representação literal do contexto espanhol original, mas uma interpretação mais livre, com elementos contemporâneos. No primeiro ato, uma bela solução visual e conceitual: luzes de neon cor-de-rosa representam a entrada de um clube noturno. Da mesma forma, as ambientações dos demais atos estiveram bastante adequadas e compuseram muito bem as cenas. A única ressalva talvez seja a iluminação, pois em alguns momentos os rostos de solistas ficaram sombreados. Os figurinos eram todos pretos, com exceção de alguns elementos mais pontuais, fórmula que tem sido repetida em diferentes montagens da Cors. Se bem que acertos podem e devem ser repetidos, há risco de deixarem de surpreender quem assiste.

Ver rostos e vozes novos em cena tem sido mais uma evidência desse momento profícuo da cena operística porto-alegrense. Na recente reapresentação da trama recheada de personagens complexos, o destaque foi a performance de Camila Umpiérrez no papel título. Além de bom canto, apresentou movimentação corporal e olhares que expressam a sensualidade da mulher movida por suas paixões e ansiosa por libertar-se de um amor possessivo. Realçou muito bem, desse modo, uma questão existencial contemporânea, contemplada no debate sobre diferentes modelos de relacionamentos, sobre possessividade e mesmo sobre as diferentes formas de violência. Também estiveram bem o barítono Roger Nunes como Escamillo e a soprano Elisa Lopes como Micaela. 

As apresentações foram acompanhadas por Patrick Menuzzi ao piano e tiveram regência e direção musical de Sérgio Sisto. Menor que as levadas ao palco no ano passado, a montagem não contou com o número de dança flamenca e o quarteto de violões. Ainda assim, foi uma linda experiência para quem a acompanhou e, mais ainda, para quem, assim como eu, pensa que ópera é sempre melhor quando mais frequente.

Enfim, esta foi a repetição de um espetáculo bem realizado e, por isso, manteve muito de sua qualidade original. Para além das boas escolhas cênicas e de boas performances, expressa de modo bastante concreto o quanto essas parcerias entre indivíduos, coletivos e instituições rendem boa ópera. Afinal de contas, uma rotina de produções líricas articula e anima a cena artística e o público.

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