Pianista Juliana Steinbach relembra Nelson Freire

por Jorge Coli 22/11/2021

A pianista franco-brasileira Juliana Steinbach, amiga próxima de Nelson Freire, falou um pouco para mim sobre a amizade de ambos.

“Nosso primeiro encontro foi em 1999, com Nelson e Martha (Argerich), no Teatro Colón. Eu me sentia intimidada diante daqueles gigantes do piano. Depois, o tempo passou. Só em 2014, quando eu já desenvolvia minha carreira de concertista, fui vê-lo em seu camarote depois de um recital que ele dera na sala Pleyel. Nossa amizade começou então de um jeito muito natural: parecia que sempre tínhamos nos conhecido. Muito caloroso, Nelson me deu um lugar em sua vida. Ele estava num apogeu musical: foi um privilégio para mim acompanhar de perto esse período. Tinha um repertório muito variado, e cada vez que realizava um concerto ou recital, me convidava, jantávamos juntos. Passei a frequentar a casa dele. Nossa amizade foi muito forte e de grande familiaridade, visitas, almoços, jantares, em Paris, no Rio, na casa de meus pais, em Lyon: ouvir e falar de música, ver filmes. Ele acompanhou o nascimento de minha filha, Olympe Guiomar, que tem seu nome em homenagem a Guiomar Novaes, por causa da admiração de Nelson pela grande pianista.

Você sabe que eu fui criada na França. Nelson me reconheceu como intérprete, pianista, brasileira. Fazia questão de falar português e me tratar como artista brasileira. Eu me sentia ouvida, reconhecida, como intérprete. Foi como um padrinho.

Ele me sugeria obras do repertório brasileiro, mesmo que não tivesse tocado, mas que queria que eu tocasse. Tocar com ele, nos mesmos recitais, foi um processo muito natural. Nelson era pleno de música. Era uma lição sem palavras tocar com ele a quatro mãos. Tinha um incrível balanço entre autoridade e ternura, que vinha da música. Queria um respeito absoluto do texto, mas não no sentido musicológico: era antes intuitivo. Grandíssima intuição e análise não verbalizada. Grande humildade na frente do texto, como se fosse ainda um estudante. Tocamos Mozart, Grieg, Ravel Brahms e Villa-Lobos a quatro mãos. Foi incrível tocar Villa-Lobos com ele. Tinha uma energia vital, sentindo a inspiração popular de Villa-Lobos. Balanço entre um sentido rítmico agudo e uma grande liberdade. Nelson era de balança, como signo astrológico: temperamental e doce. No recital de Ilhabela – você estava lá – ele tocou na primeira parte e generosamente me cedeu a segunda. Não tocou o Gluck em bis, como sempre fazia, mas me deu a partitura e disse: deixei para você!

Não foi meu professor, pois nos conhecemos quando já estava formada. Mas, depois de me ouvir na Sala Cecília Meireles, convidou-me para sua casa, pôs um disco da Guiomar Novaes com o mesmo repertório, e ficamos ouvindo. Foi um legado, senti que estava comunicando sugestões para mim. Guiomar, Nelson e eu somos muito diferentes do ponto de vista musical, mas havia comunicação por meio de admiração e carinho. Você foi o primeiro, aliás, que me associou a Guiomar Novaes com seu artigo na Folha, quando eu dei meu recital do prêmio na Cité de la Musique em Paris.

Nelson veio duas vezes ao Festival de Musique em Charolais-Brionnais que eu organizo. Apaixonou-se pelo lugar, que lhe lembrava Minas Gerais.

Nós tínhamos acertado fazer, juntos, uma grande turnê pelo Brasil, nos teatros históricos – Manaus, Belém, João Pessoa, Recife e outros. O final seria com um concerto com orquestra em São Paulo: foi pouco antes do acidente que afetou seu ombro, e infelizmente isso não ocorreu.

Nelson tinha uma cultura musical gigante, e sabia muito mais do que eu. Por vezes me perguntava: como você toca tal passagem, tal dedilhado? E me ensinava, com muita humildade. Era muito livre. Martha é muito afetuosa, mas tem muita gente em volta de si. Nelson era mais solitário. E nossas conversas, sobre Beethoven ou Brahms, por exemplo, eram de pianistas que têm repertório comum. Ele me trazia partituras do Brasil, e sugeria obras que passaram de moda, mas que eram populares no tempo de Guiomar Novaes. Perguntava: não quer fazer um revival? Obras raras, como o concerto de MacDowell. E coisas brasileiras: as valsas de Gnatalli, que ele dizia ravelianas. E o Concerto nº 2 de Saint-Saëns, que vou tocar em dezembro com a Filarmônica de Minas Gerais. Quando minha filha nasceu, ele me trouxe uma gravação dele próprio desse concerto, e disse para eu aprender essa obra. Você imagina a minha alegria em tocá-la agora, com a mesma idade que ele tinha quando gravou o disco.”

Juliana Steinbach apresenta-se no dia 28, em recital na Sala São Paulo com o Quarteto Osesp; veja mais informações aqui.

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Texto Pianista Juliana Steinbach lembra Nelson Freire, por Jorge Coli
 

Juliana Steinbach e Nelson Freire [Acervo Pessoal]
Juliana Steinbach e Nelson Freire [Acervo Pessoal]

 

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