A Canadian Opera Company resolveu criar um posto novo: Disruptor-in-Residence. O nome diz tudo: a ideia é ter em seus quadros um grupo de artistas que ajudem a mexer com o cotidiano da companhia, trazendo novas ideias e questionamentos.
O escolhido foi um coletivo chamado Amplified Opera, grupo independente que desde 2019 realiza temporadas pelo país com espetáculos que discutem temas como a representação feminina na ópera e a presença negra no palco e no repertório.
Muitos dos espetáculos são interativos e trazem a visão do público, dos próprios artistas e dos críticos para o centro do palco, contextualizando e amplificando, daí o nome, a potência da ópera como gênero desde que entendido à luz da contemporaneidade.
O projeto vai começar agora a sair do papel, mas, em conceito, é interessante. As casas de ópera desenvolveram um modelo de funcionamento, de repertório e de programação cristalizado ao longo das décadas. São estruturas muitas vezes difíceis de transformar de dentro – e a abertura para quem está de fora (e, naturalmente, tem um olhar diferente para o gênero, a relação com o público e mesmo para o repertório) pode muito ajudar.
Christie Darville, vice-diretora da Canadian Opera Company, explicou em uma entrevista a ideia por trás da novidade. “Como uma organização nacional, é nossa responsabilidade ajudar a dar vozes àqueles que regularmente desafiam normas e práticas artísticas – e a nós mesmos. É uma maneira de nos comprometer com o objetivo de fazer a ópera mais relevante do que nunca.”
Falamos muito em abandono de certezas, de reinvenção, termos que muitas vezes assustam, mas que significam apenas que uma instituição cultural precisa estar em constante movimento.
A breve declaração dá o que pensar. A Ópera do Canadá e a maior companhia de ópera do país e isso se deve em parte ao financiamento estatal que recebe, tanto do governo federal como da prefeitura de Toronto. Isso significa que sua atuação tem caráter público – e carrega enorme responsabilidade. Mas não apenas com a ópera e a manutenção de uma temporada de alto nível, mas também com o diálogo com as questões que hoje mobilizam a sociedade – uma lição aprendida na marra: em 2018, a companhia perdeu parte das verbas municipais por não atingir, entre outras, metas ligadas à promoção de “diversidade de inclusão social” no seu trabalho.
Propor esse diálogo é estar aberto ao que a sociedade tem a dizer. Diretores de instituições públicas têm mandato. E o que se espera deles? Naturalmente, que sirvam ao interesse público. Contribuindo com sua experiência e conhecimento com os projetos que dirigem, claro. Mas também mantendo-se abertos e prontos para ouvir, como diz Darville, mesmo aqueles que questionam a própria companhia e seu método de trabalho.
É uma forma de deixar de jogar na retranca e assumir protagonismo. Falamos muito em abandono de certezas, de reinvenção, termos que muitas vezes assustam, mas que significam apenas que uma instituição cultural precisa estar em constante movimento – e que, sem ele, a atividade artística é sufocada.
Nada disso é novo. Mas a iniciativa da Ópera do Canadá é fundamental porque oferece forma a um conceito e mostra que falar em renovação e reinvenção não tem nada de esotérico ou sobrenatural. É algo concreto, quando se está, claro, disposto a isso.
A pandemia trouxe uma onda de discussões sobre o papel das instituições musicais. Entre elas, um aspecto foi pouco abordado: a atuação possível de orquestras e teatros públicos na luta pela manutenção de todo um ecossistema musical que sofreu com a paralisação das atividades artísticas.
Na Alemanha, a Ópera de Munique realizou uma série de recitais transmitidos gratuitamente pela internet, mas pediu ao público, caso quisesse contribuir de alguma forma, que o fizesse por meio de doações a serem distribuídas a artistas freelancers desempregados. No Brasil, algo parecido foi realizado pela Sala Cecília Meireles: quem assistia aos recitais transmitidos pela sala podia fazer doações para o sindicato que reúne técnicos especializados no trabalho em teatros. Na Argentina, o Teatro Colón colocou sua equipe de costureiras para confeccionar máscaras à população.
A lógica por trás dessas iniciativas parece a mesma. Bancadas pelo Estado, e com sustento garantido durante a pandemia, as instituições voltaram-se à possibilidade de ajudar quem não vivia sob as mesmas condições. Claro, orquestras e teatros perderam verbas durante 2020, em especial as de bilheteria. Mas, ainda assim, puderam manter seu funcionamento e tiveram suas estruturas mantidas relativamente intactas.
No caso de Munique ou mesmo da Sala Cecilia Meireles estamos falando de dinheiro e de uma situação excepcional, uma pandemia que implodiu o meio musical como o conhecíamos. Mas a questão, em outros contextos, não poderia ser entendida de maneira mais ampla? Qual o papel que uma instituição musical pode ter na consolidação de um ecossistema, de um meio musical mais sólido?
O primeiro e mais óbvio, ainda que nada banal, está na programação de excelência. Manter orquestras e teatros de ópera funcionando, com temporadas regulares, grandes artistas, repertório diversificado, é defender e valorizar a própria existência da atividade musical como algo importante para a sociedade.
Mas, em um meio marcado ainda por enorme centralização, geográfica e de verbas, pela desigualdade de oferta cultural, e consciente das possíveis interfaces entre arte e educação, não existiriam outras maneiras?
A resposta tem a ver com o modo como entendemos uma instituição pública. Ela existe para realizar o seu trabalho apenas ou, dentro de um espírito público, para articular também um meio musical mais capilarizado e robusto? Ela pode oferecer seu know-how, capacitar grupos e projetos independentes, extraindo deles também aprendizados sobre demandas que muitas vezes só se tornam conhecidas quando há diálogo fora do ambiente protegido das salas de concertos?
Antes da pandemia, o Metropolitan Opera House de Nova York estabeleceu as diretrizes para um novo projeto de atuação nos Estados Unidos. Com queda na venda de ingressos, a companhia começou a refletir sobre como reverter esse cenário. Uma primeira resposta teve a ver com a ideia de que não adiante ser uma referência mundial na produção de ópera se o interesse pelo gênero diminui, se a relevância da manifestação artística a que se dedica não é uma noção compartilhada.
Para lidar com esse problema, o Met resolveu atuar em duas frentes. A primeira era mexer em sua própria programação, com maior variedade de títulos e maior número de encomendas de obras a um grupo mais amplo e diverso de compositores. A segunda sugeria a necessidade de deixar o Lincoln Center em direção a diferentes regiões de Nova York. Como fazer isso? Mobilizando artistas da companhia e outros convidados para realizar espetáculos em teatros menores. A questão era o repertório. Montou-se, então, uma versão pocket da Flauta Mágica, de Mozart, destinada às crianças; e encomendou-se a diferentes compositores óperas de câmara a partir de temáticas contemporâneas, que pudessem ser encenadas facilmente em diferentes espaços.
A ideia, claro, era que esses espetáculos atingissem um público que não frequenta o Metropolitan e, a partir deles, passasse a se interessar em visitar o teatro. Mas a contribuição vai além: utilizando sua estrutura consolidada, o Metropolitan abriu-se para um grupo maior de artistas da cidade e levou à criação de obras que, uma vez estreadas, podem ser utilizadas por teatros e projetos de todo o país (e até de fora dele).
É disso que se trata: usar a estrutura de uma instituição sólida para criar oportunidades para artistas e projetos independentes, que sozinhos não poderiam dar esses passos. E a mesma lógica poderia ser adotada para nossos teatros e orquestras, com o detalhe de que aqui são na sua maioria bancadas pelo poder público. Em que medida nossas grandes instituições podem estender a mão para o meio musical, para jovens artistas, para grupos de câmara que estão dando seus primeiros passos? Em outras palavras, em que medida nossas instituições públicas podem se dedicar a projetos estruturantes?
A ideia de uma política cultural é na maior parte dos casos inexistente. O investimento em cultura se faz por meio do investimento em projetos específicos, uma orquestra, um teatro, um museu. E a ideia de rede ou de sistema, com isso, fica jogada para segundo plano.
Há uma falha nesse argumento. Medidas que visam atender não apenas um projeto específico, mas, antes, estruturas mais amplas de atuação, são de responsabilidade do poder público, das secretarias de cultura, a quem cabe a definição de políticas culturais.
Mas é preciso considerar também que a ideia de uma política cultural é na maior parte dos casos inexistente. O investimento em cultura, ou a maior porção dele, se faz por meio do investimento em projetos específicos, uma orquestra, um teatro, um museu. E a ideia de rede ou de sistema, com isso, fica jogada para segundo plano.
Exigir dos projetos que ocupem esse vazio talvez signifique eximir os governos de criar políticas integradas de olhar para a cultura. Mas não parece haver gente preocupada em cobrar isso de seus chefes. E o resultado é que as instituições, por mais importantes que sejam, vão se tornando ilhas isoladas.
Formamos cada vez mais e melhores músicos, e temos grupos artísticos de excelência. Mas essas são a base e o topo de uma pirâmide que, sem o meio, não se sustenta. Pena, pois nesse meio está a possibilidade de diálogo, de aprendizado mútuo, de descobertas.
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