Há cerca de seis meses, denúncias foram feitas contra o tenor espanhol Plácido Domingo por mulheres que o acusavam de assédio sexual. A primeira reação do tenor foi de surpresa. Mas, na última terça-feira, ele resolveu ir a público e pedir desculpas “pela dor que causei”. “Eu aceito completa responsabilidade por minhas ações”, disse em um comunicado, que logo foi reproduzido pela imprensa de todo o mundo.
Horas depois, no entanto, chegou a notícia de que o pedido de desculpas era parte de um acordo com o American Guild of Musical Artists, sindicato americano dos artistas da área musical. A entidade encomendou uma investigação sobre as denúncias contra Domingo e chegou à conclusão de que havia indícios concretos de que elas eram verdadeiras. E propôs um acordo ao tenor: manteria os resultados em sigilo em troca de um pedido de desculpas e de US$ 500 mil, que seriam utilizados em um novo programa dedicado a discutir a questão do assédio no meio musical americano.
O vazamento do acordo desagradou ambas as partes. Domingo retirou-se da mesa de negociações. E Leonard Eggert, diretor do sindicato, defendeu-se dizendo que a decisão de não revelar o resultado da investigação pretendia proteger as vítimas e não o tenor. “Eu mereço ver o resultado da investigação, você merece, todos merecem”, disse à NPR, emissora pública de rádio americana, a soprano Patricia Wulf, uma das primeiras a denunciar o tenor, em uma matéria publicada em 2019 pela Associated Press.
Desde que as denúncias vieram a público, teatros americanos já haviam cancelado seus convites a Domingo. A Europa seguia como seu porto seguro, mas depois de terça isso também mudou. Até mesmo o centro de aperfeiçoamento de cantores de Palácio das Artes de Valência, criado pelo tenor, retirou seu nome da porta de entrada. Domingo, para usar a terminologia de hoje, foi cancelado pelo mundo da música.
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Há três anos, quando estouraram as denúncias de assédio contra o maestro norte-americano James Levine, o crítico do jornal New York Times Anthony Tommasini escreveu um texto no qual se questionava sobre o que fazer com as dezenas de gravações do maestro. Eram referências no repertório operístico, símbolos das suas três décadas à frente da Metropolitan Opera House de Nova York. “Devo jogá-las fora?”, perguntou-se, sem chegar a uma resposta. E a pergunta pode ser repetida agora com relação a Domingo. Como lidamos com o legado de um artista perante a informação de que, ao longo dos anos, enquanto produzia gravações e interpretações marcantes, históricas, assediava colegas e usava sua influência para ameaçá-las?
A história da ópera está repleta de homens desprezíveis e músicos geniais. Nenhum caso talvez seja mais célebre do que o de Richard Wagner. O seu antissemitismo e o uso que dele foi feito pelo regime nazista deveriam nos afastar de suas óperas? O maestro Daniel Barenboim tratou dessa questão em seu livro de conversas com Edward W. Said, Paralelos e paradoxos, editado no Brasil pela Companhia das Letras. “O fato é que Wagner era um antissemita monstruoso. Mas os nazistas usaram e abusaram as ideias e pensamentos de Wagner além do que ele jamais poderia ter imaginado”, diz o maestro. “O antissemitismo não foi inventando por Hitler ou por Wagner. Existia por gerações e gerações, séculos antes. A diferença do nazismo foi o desenvolvimento pela primeira vez de um plano sistemático de extermínio dos judeus. E não acredito que Wagner possa ser o responsável por isso. Também é preciso dizer que nas suas óperas não há um só personagem judeu, não há um só comentário antissemita.”
A pergunta seguinte é: e se houvesse? A ópera deveria ser retirada do repertório? Parece justo. Mas o que fazer, então, com a misoginia de Così fan tutte; ou com a cena em que, em Don Giovanni, Zerlina pede a Masetto que bata nela, afinal de contas ela foi desobediente? Há racismo em A Flauta Mágica, no modo como é retratado Monostatos? Há visões estereotipadas da mulher oriental em Madama Butterfly ou Turandot? Se Butterfly tem apenas 15 anos, seu dueto de amor com Pinkerton não é um caso flagrante de pedofilia? E se é, deveríamos trata-lo com lirismo sobre o palco?
A primeira resposta é a de que essas e tantas outras obras refletem ideias ou percepções de outro tempo. Mas então é justo aceitarmos que nosso tempo vive em torno de ideias diferentes – e que elas também não podem ser ignoradas, assim como novas posturas perante questões históricas. Afinal, influenciam o modo como vemos a ópera hoje. E é aí que a questão se torna ainda mais complicada.
Em setembro do ano passado, um membro da Ópera do Canadá, de ascendência chinesa, manifestou seu desconforto perante uma produção de Turandot, de Puccini. “Para mim é muito difícil assistir uma obra de arte sendo produzida sem consideração por uma comunidade que pode se sentir ofendida por ela”, disse à imprensa o ator Richard Lee.
Sua visão foi ecoada por um artigo no New York Times de uma jovem estudante de Yale, Katherine Hu, cujo pai é tenor e um dos intérpretes da produção canadense. Para ela, Turandot é uma ópera racista – e não está sozinha. “A visão estereotipada da mulher asiática como objetos sexuais submissos e exóticos persiste na cultura americana”, ela diz. “Óperas, ainda que fantásticas e ficcionais, continuam a afetar o modo como percebemos as pessoas por ela retratadas.”
São percepções pessoais, únicas. Mas vale lembrar o conceito de lugar de fala como colocado pela ativista negra Joyce Berth em entrevista ao site Nexo: “O lugar de fala é o limite que mostra que, por mais que eu tenha consciência das opressões que não são minhas, as minhas experiências não são suficientes para falar por outros. Se você não dá espaço para as pessoas contarem como é sua vida a partir da experiência de vida delas, a experiência vai ser a do homem branco, que é o privilegiado da sociedade.” Em outras palavras, cabe a qualquer um de nós decidir se essas percepções pessoais são válidas ou não? A arte não deveria justamente propor o contrário, o diálogo?
Hu tem uma sugestão a respeito de como se deve dar este diálogo. “Para sobreviver, a ópera precisa confrontar a profundidade de seu racismo e sexismo, tratando obras como artefatos históricos e não como produções culturais dinâmicas. Diretores de ópera devem se aproximar desses títulos como curadores de museus e professores – educando o público sobre o contexto histórico e tornando visíveis os estereótipos.”
Há outras respostas. Em 2017, a Ópera de Seattle acompanhou uma produção de Madama Butterfly de uma exposição sobre como a cultura americana (incluindo o cinema, o teatro, os musicais) representou a cultura oriental. Este ano, o Theatro Municipal de São Paulo convidou diretoras para imaginar produções de Carmen e Don Giovanni, óperas em que a questão feminina é central. Há dois anos, o diretor André Heller-Lopes mudou, sem mexer na música ou no texto, o final de A flauta mágica para relativizar a visão da mulher como vilã que identificava na ópera de Mozart. E há, claro, a encomenda de novas obras, não para que elas corrijam os “erros” de obras anteriores, mas para que mostrem que a ópera segue sim como uma forma de arte dinâmica, capaz de olhar para o passado e para o nosso tempo de maneira original.
O artigo de Hu gerou, de qualquer forma, reações enérgicas. Se uma obra precisa subir ao palco acompanhada de debates ou exposições, não vai recair sobre o repertório operístico a pecha de retrógrado e preconceituoso? E, se é esse o caso, não estamos nos aproximando da ideia de que talvez seja o caso de simplesmente parar de apresentar essas obras? E aí vale lembrar que nosso tempo, da mesma forma que coloca no debate a questão fundamental do lugar de fala, também insere no cotidiano a lógica lacradora e do cancelamento, que elimina, afasta, em vez de debater. Outro argumento importante: a releitura que diretores têm feito já não é suficiente para relativizar as obras? E será que, no momento em que sobe ao palco, uma peça como Turandot já não propõe naturalmente um convite à reflexão sobre o preconceito?
Meu problema com o texto de Hu é outro, seu título: “Opera has a racism problem”, algo como “a ópera tem um problema com o racismo”. Olhemos para a literatura. O escritor francês Louis-Ferdinand Céline ficou conhecido por uma obra-prima como Viagem ao fim da noite mas também por seus panfletos antissemitas – elemento que tem sido, claro, parte fundamental da análise de seu trabalho. Dizemos, no entanto, por conta disso, que a literatura europeia do início do século XX é nazista? Não. Mas nos sentimos à vontade para tais generalizações quando nos referimos à ópera, um gênero de mais de quatrocentos que, claro, inclui óperas cujo racismo – ou o sexismo – é flagrante. Mas que dificilmente poderia ser reduzido a essa percepção.
Mas, de volta às perguntas geradas pelo artigo de Hu, confesso que não tenho grandes certezas ou respostas prontas. Apenas uma, talvez: a de que o universo da ópera deveria abraçar e não diminuir esse debate. Só assim se pode evitar a cena que tão bem descreveu a crítica Anne Midgette em um artigo sobre o caso Domingo. “Como setor, ficamos no nosso canto, honestamente tentando trazer à vida obras centenárias, enquanto tampamos os ouvidos para não perceber qualquer evolução social que tornou intensamente problemáticas as mensagens dessas obras – não do ponto de vista de raça ou gênero ou do politicamente correto, mas do ponto de vista humano.”
Não me parece que a ópera possa sair ferida de um debate como esse. Pelo contrário. E, seja como for, ele está aí, colocado. Cabe aos profissionais da ópera – cantores, críticos, diretores de teatro, diretores cênicos – participar dele, com o conhecimento que têm da área e de sua história riquíssima. Só assim pode-se evitar os estereótipos e visões preconceituosas contra a própria ópera, que tanta força ganharam nos últimos tempos.
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As questões se aproximam, mas no caso de Plácido Domingo não estamos falando do valor intrínseco de uma obra e, sim, da postura de um artista fora do palco. E, nesse sentido, esse episódio sugere uma ou outra ideia a respeito de como está estruturado o meio musical. Figuras como ele, aponta Midgette em seu artigo, tornam-se líderes, mitos mesmo – e esses mitos têm uma função clara: atraem público, mídia e dinheiro, fornecendo de uma vez só o tripé para que casas de óperas possam funcionar. É o caso de Domingo, como é o caso de maestros, que seguem encarnando a ideia de figuras iluminadas, acima de mortais como todos nós pelo conhecimento que têm da música – o que justificaria todo e qualquer comportamento perante músicos e o próprio público. Não é mais uma visão única, verdade. Mas é curioso que, mesmo quando pensamos em um meio musical mais aberto, inclusivo, é dos maestros que esperamos novas iniciativas.
É claro que, como figuras de liderança, maestros têm um papel importante. O próprio Metropolitan é um exemplo. O primeiro projeto de Yannick Nézet Séguin à frente do teatro foi a encomenda de novas obras para jovens compositores, em especial mulheres, e a decisão de levar a companhia para apresentações em diferentes bairros de Nova York, buscando um público que não costuma ir ao Lincoln Center. E, agora, a temporada 2020/2021, a primeira pensada inteiramente pelo novo diretor musical, traz um número recorde de cantores negros, cantores transexuais, e uma legião de novos artistas, que estão dando os primeiros passos na carreira.
Mas a verdadeira transformação do meio musical passa também pela quebra de uma organização ainda verticalizada demais, em que todas as ideias vêm de cima, centralizadas em uma ou duas figuras que mantém um poder hierárquico que, claro, se não significa necessariamente abusos, facilita que eles aconteçam no momento em que tira dos artistas – músicos, cantores – qualquer possibilidade de ação e reação. E isso não se refere apenas a casos de assédio, mas também à impossibilidade de um compartilhamento de ideias real e concreto, em que cada artista tenha algo a dizer.
O que devemos fazer com as gravações de Domingo? A decisão é de cada um.
Mas o caso envolvendo ele é claramente um sinal de que os tempos estão mudando. E de que poderia ser objetivo das instituições musicais mudar junto com eles.
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