O Brasil se ouve em Paris

Brasil Antigo – Novo Brasil traz dois concertos temáticos que recuperam as histórias de duas cantoras líricas negras brasileiras e colocam em evidência um repertório pouco executado nas nossas salas de concerto, desde o período colonial até os dias de hoje

Boa parte do trabalho de Lula 3 tem sido retomar as relações diplomáticas com outros países. A última visita do presidente brasileiro a Emmanuel Macron aconteceu não muito tempo atrás, no começo do mês passado. De olho no acordo entre Mercosul e União Europeia (lá se vão quase 25 anos de negociações e revisões), Lula está determinado a convencer o presidente francês, que até agora tem se oposto a algumas das medidas do documento. 

A economia é um nó difícil de transformar em laço. Já a troca cultural entre os dois países, por outro lado (e não por acaso), se encontra em momento de perfeita simbiose. Estamos em plena Temporada Brasil-França, uma iniciativa que tem promovido intercâmbio entre artistas, além de discussões sobre clima e transição ecológica.

Os ares dessa temporada diplomática ainda não sopraram no Brasil porque os eventos por aqui começam só partir de agosto. Enquanto isso, vale conferir a programação completa, que pode ser encontrada neste link

A música de concerto não ficou de fora. Por aqui teremos em setembro e outubro uma residência da Ópera de Paris em dois teatros paulistas, o Municipal e o São Pedro. O evento trará apresentações dos alunos da Academia de Paris, além de workshops e masterclasses. Informações a respeito de inscrições serão divulgadas oportunamente pelos dois teatros. 

Na França os eventos estão acontecendo desde abril. O destaque para a música de concerto será um final de semana com música brasileira no Théâtre du Châtelet, em Paris. Sob a temática “Brasil Antigo – Novo Brasil”, as duas apresentações, idealizadas pelo maestro Ricardo Bernardes à frente do grupo Americantiga, procuram convergir passado e presente, numa espécie de espelho à comemoração das relações bilaterais entre França e Brasil, que, de acordo com o Itamaraty, completam 200 anos. 

No sábado, 5, será apresentado o concerto Alma Brasileira, que contará com a pianista Cristina Ortiz e duas obras de compositores contemporâneos: Harry Crowl (com estreia) e João Guilherme Ripper. Já no domingo será a vez do concerto poético-documental Marias do Brasil, com direção cênica de Ligiana Costa e estrelado pelo sopranista Bruno de Sá e a soprano Luanda Siqueira. Ambos os espetáculos terão a participação do grupo Americantiga, fundado e regido por Bernardes, que também assina a direção musical.

Marias do Brasil

Marias do Brasil coloca em destaque as trajetórias de Maria D’Apparecida e Joaquina Lapinha (cujo nome do meio é Maria), duas importantes cantoras líricas negras brasileiras. Lapinha, soprano cujo nome batiza o concurso de canto brasileiro que já destacou promissores cantores e cantoras, foi a primeira mulher negra a apresentar-se no Teatro São Carlos, em Lisboa. E a mezzo soprano Maria D’Apparecida não só fez a primeira Carmen negra, mas o fez em terras francesas; além disso, ainda viajou com a ópera até o Theatro Municipal do Rio de Janeiro em apresentação com a Ópera de Paris, retornando ao palco brasileiro que muitas vezes a rejeitara por sua cor. 

O caso do intérprete que precisa ser reconhecido na Europa para que se abram as portas em terras brasileiras é notório e permanece atual. Mas no caso de Lapinha e D’Apparecida, fazer uma carreira brilhante fora não bastou. Mulheres e negras, uma viveu no século XVIII e a outra no século XX. Suas histórias, ainda que separadas por séculos, se repetiram. Suas vozes, reconhecidas em vida, não sobreviveram ao tempo e não as preveniram que fossem apagadas da história. 

 

 

O movimento que traz essas e outras artistas para o centro do debate nasce na Nova Musicologia, vertente de pesquisa que passa a trazer outras perspectivas historiográficas e sociológicas. Marias do Brasil tem base nessas descobertas e está calcado sobretudo no trabalho de duas pessoas que conhecem a fundo as histórias de Lapinha e D’Apparecida: a cantora e pesquisadora Rosana Orsini Brescia e a jornalista e escritora Mazé Torquato Chotil, respectivamente.
 
O caso de Maria D’Apparecida é especialmente trágico, talvez por estar mais próximo dos nossos tempos. Ela foi encontrada morta em 4 de julho de 2017, em Paris, sem família que pudesse organizar seu enterro. Filha de uma empregada doméstica, ela fora adotada por uma família branca, mas não formalmente. Ela tinha 91 anos.

Já no caso de Lapinha, o resgate de sua história faz emergir não só sua biografia, mas também toda uma parte do repertório que compõe história da música brasileira do período colonial, ainda pouco conhecida. Lapinha foi responsável pela estreia da Cantata Ulissea (cuja ária é uma das peças que compõe o concerto), escrita por José Maurício Nunes Garcia. Ela sofreu violências semelhantes às que o compositor sofrera: era considerada excelente artista apesar de seu “defeito de cor”, assim como ele. No caso de Lapinha, isso poderia ser “facilmente resolvido com cosméticos”, segundo declarações da época. Afinal, ela se apresentava no palco. 

Cartaz do espetáculo 'Marias do Brasil' [Divulgação]
Cartaz do espetáculo 'Marias do Brasil' [Divulgação]

 

O embasamento teórico em Marias do Brasil dá conta das biografias e do repertório. Mas outros ângulos, mais subjetivos, permanecem em aberto e dão espaço para outras criações. Ligiana Costa, que fez a dramaturgia em parceria com Sofia Boito, caracteriza o gênero de Marias do Brasil como um concerto poético-documental, no qual há livre trânsito entre memória e criação. “Essa imaginação abre espaço para aproximações mais poéticas. Não é um espetáculo apenas musicológico, ainda que essa parte seja de extrema importância”, ressalta.

A inspiração principal, ela conta, vem do livro Água é uma máquina do tempo, de Aline Motta. Nele, além da ambiguidade das fontes de criação – o que confere à obra seu caráter poético – há também a ideia do movimento das águas como testemunho do passar do tempo. “Fizemos intermezzi sonoros com o som do mar, acompanhando o espetáculo todo. Este é o mar que levou as duas para a Europa, mas é o mar que também trouxe os ancestrais delas para o Brasil, escravizados. A ideia é tentar fazer uma dramaturgia cruzada entre a vida dessas duas mulheres negras, cantoras líricas que fizeram essa travessia atlântica”, aponta. 

Videografia (por Vic Von Poser) e iluminação (de Abigail Fowler) também vão compor o concerto, que conta com figurino de Rick Nagash. O público ouvirá as vozes da soprano Lorena Pires (muito celebrada recentemente por passar a compor a Academia da Ópera de Paris), da própria Maria D’Apparecida e narrações da atriz Camila Pitanga, entremeadas por peças sonoras criadas por Edson Secco.

Repertório

A idealização de Marias do Brasil lembra Grão da Voz, que foi estrelado por Bruno de Sá no Theatro São Pedro ano passado, junto com os cantores da Academia de Ópera. Mas, se no primeiro espetáculo a voz era a personagem principal, em Marias do Brasil essas vozes ganham nomes e histórias, que estão também conectadas pelo repertório.

A seleção é interessante porque soma nomes conhecidos, como o de Villa-Lobos, Ernani Braga e Chiquinha Gonzaga a obras de compositores do período colonial pouco executados, como é o caso de Cândido Inácio da Silva e Marcos Portugal, além de outras modinhas. A peça mais antiga que será executada é uma ária escrita na Bahia em 1759, de composição anônima. 

Nesse sentido, parece ter sido um encontro perfeito o de Ligiana Costa com o maestro e pesquisador Ricardo Bernardes, que é especializado na música antiga do Brasil e de Portugal e é dedicado a este repertório desde pelo menos 1995, quando fundou o grupo Americantiga, que está comemorando seus 30 anos de atividades.

Para o maestro, a concepção geral de O Grão da Voz tinha tudo a ver com alguns projetos que ele havia realizado, como um concerto biográfico em homenagem a Joaquina Lapinha, apresentado em 2018. 

“A ideia é relacionar os repertórios dessas duas cantoras”, conta o maestro. “É uma homenagem a elas por meio de cantores que têm destaque na Europa hoje em dia, com trajetórias semelhantes”, aponta.

A formação do Americantiga é barroca. Por essa razão, foi necessário fazer arranjos de algumas das peças. Os arranjos ficaram a cargo de Juliana Ripke e Anderson Castaldi. Lua Branca, de Chiquinha Gonzaga, por exemplo, ganhou ares mozartianos, com cordas, clarinetes e piano (que será executado por Giancarlo Staffetti). E Azulão está arranjado para cordas e guitarra barroca. 

A soprano Luanda Siqueira e o sopranista Bruno de Sá dão voz a esse repertório, mas não necessariamente encarnam as duas personagens. A concepção é mais livre do que isso. Para Luanda Siqueira, conhecer e poder dar voz a essas histórias é motivo de orgulho. “Tudo o que quero é poder contribuir e retribuir a beleza e criatividade dessas mulheres, mostrar como elas ajudaram a construir esse mundo lírico”, ela ressalta. Carioca radicada em Paris há mais de 20 anos, ela é conectada à música barroca desde seus anos de estudo no Rio de Janeiro. 

Bruno de Sá conheceu as histórias de Lapinha e D’Apparecida graças ao projeto. “Estou bem empolgado. Foi uma descoberta poder falar sobre essas cantoras. Fazer a música brasileira em palcos europeus é sempre uma responsabilidade grande”, ele ressalta. Além de outras peças do repertório, ele cantará as Bachianas nº5, de Villa-Lobos, obra que ele gravará para um álbum a ser lançado no ano que vem. 

Alma Brasileira

A intersecção entre antigo e novo é um dos nortes desse final de semana temático a ser realizado no Théâtre du Châtelet. Se Marias do Brasil dá enfoque a duas cantoras que viveram uma mesma história em épocas diferentes, Alma Brasileira conecta músicas de compositores contemporâneos ao repertório do século XX. 

Há duas obras recentes que abrem e fecham o programa. A Harry Crowl foi encomendada a Suíte brasileira nº2, na qual o compositor trabalha materiais musicais de obras antigas brasileiras, dentre elas um moteto de Enrico Lobo de Mesquita e uma fuga de um Te Deum anônimo, “erroneamente atribuída a Manoel dias de Oliveira”, como aponta Ricardo Bernardes.

Por último, Pequeno concerto para Mafra, de João Guilherme Ripper, foi escrita em 2023 para o Palácio Nacional da cidade portuguesa. “O primeiro movimento fala sobre a construção do mosteiro, feita graças ao ouro brasileiro”, aponta o maestro.

Cartaz do espetáculo 'Alma Brasileira'
Cartaz do espetáculo 'Alma Brasileira' [Divulgação]

 

A obra de Ripper terá como solista a pianista Cristina Ortiz, que também executa o Concerto nº 9 de Mozart junto ao Americantiga. Ela fica à frente do programa na segunda parte do concerto, executando obras para piano solo de Nepomuceno, Lorenzo Fernandez, Fructuoso Vianna e Camargo Guarnieri.

O final de semana temático dentro da Temporada Brasil-França é o ponto alto das comemorações aos 30 anos do Americantiga, segundo Ricardo Bernardes, mas outros concertos dedicados à efeméride têm acontecido desde o início do ano. No segundo semestre, em 13 de dezembro, o grupo apresenta a ópera Gli eroi spartani, composta pelo compositor português António Leal Moreira em 1788. Será uma co-produção com a Fundação da Casa de Mateus, em parceria com a Orquestra Barroca de Mateus, também fundada por Bernardes. 

Por fim, resta saber se é possível que os espetáculos viajem para o Brasil em momento oportuno, aposta que todos os envolvidos nos projetos torcem para que aconteça. Sobre Marias do Brasil, Ligiana Costa ressalta: “mais do que o espetáculo, acho que a ideia de pensar esse tipo de repertório é muito interessante, por ser documental. Isso dá oportunidade para as casas de ópera pensarem formatos encenados, que engajam o público, mas com variedade de repertório”, defende. O mesmo pode acontecer com Alma Brasileira, o que seria uma feliz volta de Cristina Ortiz aos palcos brasileiros. “É de fato um espetáculo que temos o desejo de replicar”, conclui Ricardo Bernardes.

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