Ópera da juventude já apontava caminhos de Francisco Mignone

por Camila Fresca 20/05/2023

Produção de ‘O contratador de diamantes’, apresentada no Festival Amazonas de Ópera, mostra como partitura escrita aos 24 anos já mostrava o orquestrador brilhante e o melodista inspirado que o compositor se tornaria

MANAUS - Desde quinta-feira, dia 18, o 25º Festival Amazonas de Ópera (FAO) sedia também a 16ª conferência da OLA - Ópera Latino América. Além das discussões, que acontecem ao longo dia no Palácio da Justiça, os participantes do encontro estão tendo a oportunidade de conferir todas as óperas apresentadas nesta edição do festival, com quatro títulos apresentados em quatro dias. O primeiro deles foi O contratador de diamantes, ópera com a qual Francisco Mignone, aos 24 anos, estreou no gênero. 

Jorge Coli contou aqui neste espaço sobre a primeira apresentação da obra no festival, no dia 21 de abril. O título foi também o escolhido para abrir a maratona FAO-OLA, no dia 18. Em três atos com libreto em italiano de Gerolamo Bottoni, baseado no drama homônimo de Affonso Arinos, O contratador de diamantes (1921) inaugura uma uma série de quatro óperas de Mignone: O inocente (1927), O chalaça (1976) e Memórias de um sargento de milícias (1978) – houve ainda Maria, a louca, que ficou incompleta. 

A ação se passa entre 1752 e 1753, em Diamantina, Minas Gerais. Um velho latinista, mestre Vicente (tenor) abre a ópera interpretando sonhos das moças e explicando como se manter atraente aos olhares femininos. Camacho e Cotinha (tenor e soprano) formam o par de apaixonados. Vicente revela a Camacho que há um plano terrível contra Felisberto Caldeira Brant (barítono), o contratador de diamantes, desejoso de libertar a pátria dos estrangeiros e que por isso conta com o apoio da população local. O ouvidor (também barítono), que representa os interesses do Reino, está apaixonado por Cotinha, sobrinha de Felisberto. Não correspondido em sua paixão, promete vingar-se de toda a família. Este é o ponto de partida da trama, que oscila entre o amor e a política. 

O contratador de diamantes estreou em 1924, quando Mignone, estudando na Europa, desembarcou no Brasil com a partitura debaixo do braço. Em depoimento ao MIS-RJ em 1968, ele explica a origem da obra: “Eu tinha participado da peça homônima escrita por Affonso Arinos, em São Paulo, em 1917, fazendo o papel do maestro Plácido, que rege o minueto, de cabeleira empoada e tudo. Eu era um bonito rapaz, todas as moças acharam uma maravilha. Então, achei que devia escrever a música para esse drama. Em Milão, elaborei junto com meu professor de literatura o libreto”. 

A composição oscila entre o universo da música italiana e brasileira. Além da ascendência familiar - Mignone era filho de um músico italiano radicado no Brasil que tocava vários instrumentos, com destaque para a flauta - o jovem compositor havia partido para a Europa para estudar em 1920. Permaneceria por lá nove anos, sendo a maior parte do tempo na Itália. No mesmo depoimento, Francisco Mignone contou que se estabeleceu em Milão mas ia sempre a Paris e Viena ouvir as novidades. “Fui a Paris ouvir Le sacre du printemps, confesso que não entendi nada, não estava pronto para aquilo”, afirmou. Por outro lado, ouviu mais de uma vez a primeira ópera do compositor Ildebrando Pizzetti (1880-1968), Debora e Jaele, que considerou formidável. 

O balé no segundo ato de 'O contratador de diamantes', no Festival Amazonas de Ópera [Divulgação]
O balé no segundo ato de 'O contratador de diamantes', no Festival Amazonas de Ópera [Divulgação]

O clima italiano é o que domina o primeiro ato do Contratador, que termina com um minueto. Já o universo da música brasileira se insinua desde a abertura do segundo e culmina com a famosíssima Congada, que além de dançada é cantada em português. No ato conclusivo, passado às margens do Ribeirão do Inferno, os garimpeiros chegam ao trabalho ao som de uma canção, igualmente entoada em português, e a passagem entre os dois idiomas é resolvida com muita naturalidade, como também comentou Coli em seu texto. No final, Felisberto Caldeira Brant, o contratador – que havia sido preso a mando do ouvidor – é levado à fronteira e sonha com o Brasil liberto da exploração estrangeira. 

Depois de uma última apresentação nos anos 1950, também no Rio e com regência do próprio Mignone, O contratador de diamantes teria que esperar quase 70 anos até que um trabalho minucioso e lento do maestro Luiz Fernando Malheiro, com o apoio de Roberto Duarte e da Academia Brasileira de Música, recuperasse a partitura e levasse a obra novamente aos palcos nesta edição comemorativa do FAO. Para o próprio Mignone, um dos motivos que dificultavam novas montagens seria o fato do Contratador ser uma ópera bastante teatral e com desafios cênicos. Segundo ele, para a estreia, a maior dificuldade foi a Congada, resolvida graças à ajuda do compositor e violonista Donga, que arrumou os dançarinos e inclusive dançou junto na estreia.

Se há alguma dificuldade na ópera, esta reside no libreto. Se a trama logo de início apresenta as questões políticas e amorosas a resolver, o par romântico, que protagoniza belíssimos duetos no primeiro e segundo atos, simplesmente some de cena no terceiro, quando a trama política e o personagem de Felisberto é que ganham protagonismo. 

A montagem do FAO, que contou com direção musical e regência de Luiz Fernando Malheiro e direção cênica de William Pereira, optou por manter a narrativa em sua época original, apresentando no primeiro ato uma nobreza mineira vestida à europeia com direito a saltos, maquiagem e perucas. No segundo, quando personagens menos abastados entram em cena, a música ganha contornos nacionais e a língua portuguesa surge, os cenários de Giorgia Massetani acompanham as mudanças, apresentando uma cenografia que aos olhos atuais parece menos artificial. A Congada, ponto alto do segundo ato – que por sua vez é o ponto alto da ópera – contou com uma bela coreografia e uma música tão bem executada que era quase impossível não acompanhar o ritmo com os pés e as mãos, na impossibilidade de sair dançando. De forma geral, a orquestra esteve ótima e a concepção musical foi muito feliz. O coro e os solistas estiveram equilibrados, com destaque para o par romântico de Giovanni Tristacci e Fernanda Allande, impecável em suas intervenções.

Situado dentro da tradição da ópera italiana e surpreendendo com elementos nacionais, O contratador de diamantes já deve ter revelado, para aqueles que assistiram a sua estreia em 1924, o orquestrador brilhante e o melodista inspirado que se tornaria Francisco Mignone. A primeira apresentação foi um sucesso mas, no depoimento de 1968, Mignone não o creditou à inspiradíssima música que havia composto: “acho que o sucesso foi mais porque eu era um rapagão bonito que tinha escrito uma ópera e as moças ficaram todas empolgadas”, declarou.

(Camila Fresca viajou a Manaus e assistiu à ópera O contratador de diamantes a convite do Festival Amazonas de Ópera.)

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Comentários

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Conhecia essa ópera graças a uma redução canto/piano manuscrita e à gravação precaríssima de 1956, em que se advinha a música mais do que se ouve. Esperei ansiosamente por essa "ressureição" e, embora não tenha estado presente, pude assistir à transmissão e, finalmente, apreciar as belezas dessa obra magnífica. Conhecendo bem as 4 óperas do Mignone, me atrevo a afirmar que essa é, de longe, a mais bonita.

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