Na “Danação de Fausto”, Osesp e Fischer firmam pacto sem demônio e ótima simbiose

por Márvio dos Anjos 14/05/2023

A danação de Fausto op.24 é possivelmente a partitura que melhor resume o que significou a passagem de Hector Berlioz pela música. O compositor dramático que não foi bem sucedido na Opéra de Paris, um sinfonista absolutamente amante da palavra, o compositor francês criou, em 1846, esta peça que não previa encenação porque confiava plenamente nos seus poderes de descrição de paisagens e expressão de sentimentos. Nela, o bombástico que tanto impressiona no gênio de La Côte Saint-André se une a uma escrita sutil e até camerística, como a cena da Canção gótica de Marguerite.

O regente Thierry Fischer soube criar com a Osesp uma Danação que contemplou o melhor desses dois mundos, e não seria exagero dizer que a performance do último sábado tinha qualidade para se tornar um belo registro fonográfico, com apenas uma exceção: o Fausto do tenor Valentyn Ditiuk merecia ter sido desencaminhado por um Mefistófeles com maior presença vocal.

O ucraniano foi o grande destaque dentre o quarteto de vozes, com um registro lírico suave e hábil, muito adequado a este Fausto de Berlioz. Ditiuk soube acariciar as palavras em seus solos e não se intimidou com os dós sustenidos do dueto Ange adoré, uma das maiores representações do amor à primeira vista em toda a lírica mundial. A apresentação ganhava um subtexto interessante sempre que lembrávamos que sua Marguerite, a mezzo Karina Demurova, é de nacionalidade russa. A cumplicidade exibida entre os dois fez pensar que a paz é possível naquela região do mundo, ainda que Demurova tenha apresentado questões com sua afinação na Canção gótica. Porém, sua voz de timbre escuro e enorme presença evoluiu no dueto e na ária, saindo da performance muito aplaudida.

Notado por sua participação na coroação do rei Charles III, o simpaticíssimo barítono inglês Roderick Williams apresentou uma voz constantemente em surdina, sem torque, sendo pouco ouvido mesmo nos momentos em que a orquestra não apresentava volumes ferozes. Se é verdade que Williams foi o cantor que teve o mérito de nunca sair do personagem demoníaco durante a performance, com expressões faciais de puro charme enfatizando seu papel sedutor, suas prestações da Canção da pulga e Devant la maison foram abaixo da expectativa. Por sua vez, o barítono Erick Souza, que encarnou Brander, teve boa performance na Canção do rato.

Fischer regeu tudo com gestos muito claros, andamentos dentro da tradição consagrada da peça e um enorme capricho ao colorido orquestral. Há um berlioziano entre nós

Este concerto teve uma das mais idiomáticas apresentações recentes da Osesp. Desde sua chegada a São Paulo, o suíço Thierry Fischer havia prometido uma atenção especial ao repertório francês, e seu Berlioz comprovou a manutenção da promessa. Desde a primeira parte, os violinos mostraram acabamento inspirado na bucólica Le vieil hiver, enquanto a Marcha húngara exibiu uma orquestra com sangue nos olhos. Há que se aplaudir muito a seção percussiva e o coro da Osesp, que mostraram precisão diabólica nos acentos e explosões da cena da taverna e na corrida para o abismo, em que o grito aterrorizante do coro infantil e feminino deu um toque especial. 

Em meio a uma performance de sábado de audível entusiasmo, a única ressalva foi a escolha estética para o Amen dos beberrões: afirmação do repúdio berlioziano ao exercício acadêmico da fuga, que ele pessoalmente detestava, o trecho poderia ter recebido tratamento mais cômico, mas isso é detalhe menor. No coro dos cantos de Páscoa, o conjunto teve o perfeito acento da nostalgia religiosa de Berlioz, que foi o mais cristão dos compositores ateus.

Fischer regeu tudo isso com gestos muito claros, andamentos dentro da tradição consagrada da peça e um enorme capricho ao colorido orquestral de Berlioz, que em momento nenhum correu o risco de soar embolado. Se sua apresentação da Terceira sinfonia de Mahler na abertura da temporada já tinha sido alvissareira, o suíço deu com a Danação uma demonstração de simbiose musical cada vez maior com o conjunto residente da Sala São Paulo e fez pensar o que seria possível com o Réquiem, quem sabe numa temporada futura. Há um berlioziano entre nós.

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Final do concerto em que a Osesp apresentou 'A danação de Fausto', de Berlioz [Divulgação]
Final do concerto em que a Osesp apresentou 'A danação de Fausto', de Berlioz [Divulgação]

 

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