Decisão do governo estadual sobre gestão da Sala Minas Gerais abre caminho para diminuição de ensaios, concertos e atividades do grupo, que pode perder sua sede
A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais vai, a partir de julho, dividir a Sala Minas Gerais, sua sede desde 2015, com espetáculos de teatro, shows, eventos corporativos e tudo o mais que um novo gestor julgar cabível. Isso porque, na sexta-feira, a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig), proprietária da sala, assinou um acordo com a Federação das Indústrias de Minas Gerais para que o espaço seja gerido pelo Sesi Minas (leia aqui).
No anúncio do novo acordo, o presidente da Codemig afirmou que a sala é “subutilizada”, com apenas “três horas de espetáculo por semana”, o que impede o prédio de “estar vivo, ocupado, borbulhando”. O comentário é desonesto. Três horas de concertos exigem período de ensaio. Se considerarmos os dias de preparação, somados aos concertos didáticos, concertos para juventude, apresentações de música de câmara, atividades da Academia da Filarmônica e a gravação de discos, a sala, em 2024, estará ocupada ao longo de 270 dias. É muito, é pouco? Com certeza é mais do que três horas semanais.
Mas há um outro aspecto a ser considerado. O repasse de verbas do Estado para a filarmônica está em queda desde 2014. Naquele ano, às vésperas da mudança do grupo para a Sala Minas Gerais, ele foi de R$ 22,5 milhões; desde 2021, é de R$ 17,5 milhões – e a queda ainda é maior se considerarmos a ausência de reajuste relacionado à inflação acumulada do período, de quase 20%, ou a variação cambial, lembrando que só entre 2020 e 2021 o real teve desvalorização de quase 40% perante o dólar, moeda em que se paga, por exemplo, aluguel de partituras e direitos autorais, além de cachês de artistas estrangeiros.
O repasse de R$ 19,5 mi representa 42% do orçamento anual da orquestra. Não paga os salários dos funcionários, músicos incluídos, na casa dos R$ 27 milhões. E há ainda as verbas necessárias para a programação artística (R$ 10 milhões), manutenção da Sala Minas Gerais (R$ 4,3 milhões) e outros custos administrativos (R$ 1,7 milhão). O orçamento total é, portanto, de cerca de R$ 44 milhões. É muito, é pouco? Para efeito de comparação, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e a Sala São Paulo possuem orçamento anual de R$ 140 milhões.
No caso da orquestra paulista, o repasse do Estado também corresponde a cerca de 43,5% da verba total, valor que não cobre o gasto com salários, ou seja, o funcionamento básico da orquestra. No início de 2023, no Theatro Municipal de São Paulo, a falta de reajustes também fez do repasse feito pela prefeitura insuficiente para cobrir a folha de pagamentos. E há ainda, para ficarmos em apenas alguns exemplos, o caso do Festival Amazonas de Ópera que, neste ano, foi simplesmente cancelado pelo governo amazonense.
Isso tudo quer dizer que, nesses casos, e eles não são os únicos, as esferas estatais a que pertencem as orquestras e teatros deixaram de ser suas mantenedoras, transferindo para o governo federal (por meio das leis de incentivo que regem os patrocínios que ajudam a fechar as contas) parte não pequena da responsabilidade.
De volta à filarmônica, porém, o caso é ainda mais grave.
O Estado de Minas Gerais, ao falar em espaço “subutilizado”, exige que a orquestra, que pertence à sua estrutura, faça mais, mas está disposto a investir cada vez menos no grupo. E o novo acordo torna possível uma diminuição ainda maior: se, na nova configuração do espaço, a filarmônica for forçada a fazer número menor de apresentações, cairá a arrecadação com ingressos (hoje na casa de R$ 2,6 milhões); e, com a renda obtida com o estacionamento ou com o aluguel para eventos agora indo para o Sesi, outros buracos podem se abrir no orçamento.
Ou seja, a asfixia pode ser ainda maior.
Leônidas Oliveira, secretário de Estado da Cultura e do Turismo, disse ao Estado de Minas que a mudança “vai dar para a sala e para a filarmônica maior tranquilidade para a gestão do espaço” e que a temporada 2024 não será afetada. Nada falou dos próximos anos – ainda não há contrato de gestão entre a secretaria e o Instituto Cultural Filarmônica, gestor da orquestra, para 2025. E, convenhamos, é difícil acreditar que o fato da orquestra só ter ficado sabendo do novo acordo pela imprensa teria sido mero descuido. Soa mais como projeto.
A situação concreta a partir de agora é a seguinte: a Sala Minas Gerais passa a ser uma criatura com duas cabeças. Uma delas entende o espaço como uma sala que gira em torno da música clássica, em apresentações e ações pedagógicas; a outra, como um espaço para eventos, ligados ou não à cultura. O quanto esse arranjo é de fato possível não se sabe – mas é fato que o Sesi Minas, pertencente à Federação das Indústrias de Minas Gerais, a partir de julho, terá controle da agenda da sala e, portanto, da agenda da filarmônica. No limite, o acordo permite que se decida que a orquestra nem mesmo use a sala para ensaios, por exemplo.
O caso é didático. Mostra, primeiro, a incompreensão da importância de uma orquestra sinfônica para a vida cultural de uma cidade ou estado. E, segundo, revela a ausência de uma política cultural de fato. Não há problema em cobrar de uma orquestra que faça mais, encontre novos públicos ou maneiras inovadoras de realizar seu trabalho (o que a filarmônica já vem buscando). Mas fazer isso sem estar disposto a pensar em conjunto possibilidades ligadas a uma política mais ampla, levando em consideração as lógicas próprias da atividade, é discurso vazio, em especial quando não se está disposto a investir nisso. Em meio a esse contexto, dizer que, com menos orçamento e sem uma sala própria, está se investindo no futuro da orquestra é enorme desfaçatez. Se há aqui alguma política em jogo, é a de potencial destruição. O tempo vai dizer se é esse o objetivo. Mas já estão colocadas as condições jurídicas para o fim da Filarmônica de Minas Gerais.
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Comentários
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Infelizmente não é apenas…
Infelizmente não é apenas meu Estado (BA) que carece de uma real política pública para a música de concerto. Isso requer do poder público conhecimento sobre o campo, visão de conjunto, articulação entre projetos e investimentos e, sobretudo, um plano de longo prazo cujos resultados sejam monitorados e avaliados pelos agentes envolvidos e pela cidadania que é quem paga toda essa conta. Sem isso o que vemos é apenas investimento populista, personalismos movidos a vaidades, supervalorização de interesses pessoais em lugar do interesse público e descontinuidades cíclicas. É completamente incoerente o cenário de Minas. O Governo investe milhões para construir uma sala que talvez seja a mais qualificada do país para a execução e fruição da música de concerto e agora, por não fazer desse espaço uma mola propulsora para uma real política pública para a música de concerto, penaliza a Filarmônica. Ainda como Diretora Executiva da OSBA, em 2019, fui gentilmente recebida por Diomar Silveira e a equipe da Filarmônica. E o quadro que se assevera agora já existia: o contrato com o Estado não garantia nem a folha e a gestão da Sala Minas já vivia em disputa. Fiquei profundamente admirada com a capacidade do Instituto em manter tanta qualidade artística mesmo enfrentando um contexto de gestão tão desafiador. Se, como a Bahia, Minas Gerais não tivesse tantas empresas interessadas em usar Leis de Incentivo para custear suas contrapartidas sociais a conta jamais fecharia. Cinco anos depois, quase três deles atravessado por uma pandemia, a grande ideia do Governo do Estado é dificultar ainda mais que a Filarmônica faça seu trabalho não parece lógica. A menos que, de fato, a ideia seja descontinuar a Filarmônica. Algo que eu custo a acreditar.
Uma rápida busca na internet…
Uma rápida busca na internet e surgem diversas notícias da vontade do Gov de Minas de privatizar a CODEMIG, que é a dona da Sala Minas. Diferente de outros exemplos como a Sala São Paulo, que pertence ao governo do estado, a Sala Minas tem acionistas por meio da CODEMIG. É uma situação muito particular na qual tanto governo de Minas quanto os acionistas da empresa devem ser cobrados. Afinal, lá atrás a empresa cedeu o terreno e construiu a sala sob quais condições? Tirar o direito de gestão da sala, previsto no contrato de gestão/termo de parceria é sufocar e inviabilizar tanto a Orquestra quanto o ICF. Mais do que isso. É também um golpe no modelo de gestão por meio de Organizações Sociais de Cultura. Talvez o mais significativo desde a criação do modelo em 1998.