Texto de Camila Fresca publicado na Revista CONCERTO de abril de 2010
O mês de abril marca os 180 anos de falecimento do padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830). O compositor brasileiro é a mais importante personalidade de nossa música colonial, além de ser um dos mais significativos de toda a América nesse período. Mulato de família humilde e descendente de escravos, seu legado não se restringe apenas às obras deixadas, mas estende-se a sua atuação como intérprete e pedagogo
Seja pela quantidade, seja pela qualidade das obras, o padre José Maurício Nunes Garcia distingue-se como o grande compositor brasileiro de todo o período colonial. Tendo atuado em época imediatamente posterior à da rica música mineira produzida durante a fase áurea de extração do ouro (século XVIII), sua obra possui linguagem particular, facilmente reconhecível e que se destaca da espécie de estilo comum que pode ser encontrado nos autores mineiros e mesmo hispano-americanos.
José Maurício viveu dias de glória, mas morreu em dificuldades. No entanto, ao contrário de outros compositores, sua figura nunca foi totalmente esquecida. Ele conquistou sucessivos admiradores que procuraram preservar sua memória, mas foi a partir da década de 1940 que sua vida e obra passaram a ser objeto de longo e aprofundado estudo da musicóloga Cleofe Person de Mattos que, além de transcrever e promover a execução de suas peças, editou um catálogo delas e uma biografia que até hoje é referência para quem deseja saber mais sobre o compositor. Mais recentemente, pesquisadores como André Cardoso e Ricardo Bernardes têm contribuído para recolocar sua obra em circulação.
Neto de escravos, José Maurício Nunes Garcia nasceu no dia 22 de setembro de 1767. Seu pai falece alguns anos depois e é sua mãe quem cuida de sua educação: José Maurício estuda filosofia, gramática, retórica e humanidades. Já sua formação musical fica a cargo do músico mineiro Salvador José de Almeida Faria. É provável que Salvador tenha transmitido ao futuro padre um pouco das tradições musicais de seu estado, além da técnica de compositores italianos e portugueses do século XVIII. Em 1783, aos 16 anos, José Maurício compõe sua primeira obra, Tota pulchra es Maria, uma antífona escrita para soprano, flauta, coro e orquestra de cordas. O jovem compositor já devia ter uma atividade profissional consistente – sabe-se que ele dava aulas desde os 12 anos –, pois em 1784 é um dos fundadores da irmandade de Santa Cecília, destinada a reunir os “professores da arte da música” do Rio de Janeiro.
Aos 25 anos, José Maurício Nunes Garcia é ordenado padre. Para Cleofe Person de Mattos, a escolha pela carreira eclesiástica foi menos uma vocação do que um recurso para alcançar status no campo da música, superando as dificuldades decorrentes do “defeito de cor”. Segundo André Cardoso, esse seria o único meio que poderia levá-lo ao posto de mestre-de-capela. De fato, em 1798 José Maurício assume tal função na Sé do Rio de Janeiro, e nos dez anos seguintes desenvolve intensa atividade composicional, atuando ainda como organista e regente.
É também em 1798 que ele dá início a seu famoso curso gratuito de música, destinado a jovens pobres e que se transformará em futuro celeiro de profissionais da música no Rio de Janeiro. Mais tarde a iniciativa inspiraria um discípulo, Francisco Manuel da Silva, na criação de um grande estabelecimento gratuito de ensino musical: o Imperial Conservatório de Música (hoje Escola de Música da UFRJ). A atividade de professor não se limitou só às aulas, tendo José Maurício escrito manuais teóricos, com destaque para o “Compêndio de música e método de pianoforte”, dedicado a seus filhos mais velhos Apolinário José e José Maurício Nunes Garcia Júnior. Sim, filhos, pois desde pelo menos 1805 José Maurício era ligado a Severina Rosa de Castro, que viria a ser mãe de seus seis herdeiros. José Maurício Júnior foi aluno de pintura de Debret e legou para a posteridade o único retrato de seu pai, que ilustra este texto.
Em 1808, fugindo das tropas de Napoleão, a família real e parte da corte portuguesa, liderada pelo príncipe regente D. João VI, refugiam-se no Brasil, e o Rio de Janeiro vê-se elevado a capital do reino. São conhecidas as profundas transformações sociais e culturais que tal fato implicou, fazendo com que a cidade gradualmente se aproximasse dos padrões europeus. Modificações também são sentidas na vida musical, sendo criados o Teatro de Ópera e a Real Capela de Música, nos moldes da congênere lisboeta.
Começa a chegar ao Rio de Janeiro um número expressivo de cantores e instrumentistas, e José Maurício é designado por D. João mestre da Real Capela. Tem início então o mais profícuo período composicional do sacerdote-músico, e suas composições refletem uma renovação estilística, com o aproveitamento dos novos recursos vocais e instrumentais. “O que caracteriza este período como de transição é a síntese através da qual José Maurício adapta sua música e sua linguagem, obtendo um estilo híbrido em sua criação, ainda com resquícios fortes da primeira fase, mas já alçando voos em direção ao estilo que iria caracterizar sua segunda fase: mais madura e moderna”, afirma Ricardo Bernardes. Entre 1808 e 1811, José Maurício compõe cerca de 70 obras, com destaque para a Missa de Nossa Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810, a mais sofisticada e complexa das que havia composto até então e que revela um autor que, aos 43 anos, encontrava-se em plena maturidade.
Porém, esse período de bonança duraria pouco, já que em 1811 chega ao Rio Marcos Portugal – o mais célebre compositor português de sua época – para assumir as funções de diretor do Teatro de Ópera e compositor da Real Capela. Sua chegada encerra o período de José Maurício à frente da instituição, bem como ofusca o destaque que este havia adquirido como músico da corte – embora ele continuasse a compor ocasionalmente e a assumir solenidades menores. Cronistas da época deixaram registrado o clima de rivalidade que se instalou entre os compositores, mas o fato é que o estilo italianizado de Marcos Portugal agradava em cheio ao gosto da corte instalada no Rio.
Vale notar, nesse período, o contato de José Maurício com o compositor austríaco Sigismund Neukomm, que entre 1816 e 1821 permaneceu no Brasil. A amizade estabelecida entre os dois foi relevante para a evolução da linguagem musical do sacerdote, fazendo com que ele tivesse a oportunidade de estrear no Brasil obras de Haydn e Mozart.
Embora continuasse escrevendo, a última década de vida de José Maurício foi de decadência física e econômica, a ponto de ter que fechar o curso gratuito que desde 1798 mantinha em sua casa. Sua última obra, escrita em 1826, foi a Missa de Santa Cecília, encomendada pela irmandade homônima e um de seus maiores legados artísticos. Em 1830, José Maurício falece em “extrema miséria”, segundo Cleofe Person de Mattos.
Porém, se em sua época teve o talento ofuscado, o que se notou ao longo dos anos foi um contínuo interesse por suas obras, e hoje José Maurício figura com justiça entre os mais brilhantes compositores nascidos no Brasil, ao lado de nomes como Carlos Gomes e Villa-Lobos.
Linha do tempo
1767 – José Maurício nasce a 22 de setembro no Rio de Janeiro
1783 – Compõe, aos 16 anos, a antífona Tota pulchra, para coro a 4 vozes, já revelando suas qualidades como compositor
1784 – O compositor é um dos fundadores da irmandade de Santa Cecília, que reunia os “professores da arte da música” no Rio de Janeiro. 1792 Aos 25 anos, José Maurício é ordenado padre
1798 – É nomeado mestre-de-capela da Sé do Rio de Janeiro, onde já atuava como músico e compositor. Também inicia as atividades de professor, ministrando em sua casa cursos gratuitos para jovens carentes
1808 – Chegada da família real ao Brasil. José Maurício é nomeado mestre da Real Capela de Música por D. João VI
1811 – Com a chegada ao Rio do compositor português Marcos Portugal, José Maurício perde o posto de mestre da Real Capela, bem como a posição de destaque que desempenhara nos últimos anos
1816 – O compositor austríaco Sigismund Neukomm, que travaria amizade com José Maurício, chega ao Brasil
1826 – José Maurício compõe sua última obra, Missa de Santa Cecília
1830 – Falece no Rio de Janeiro em 18 de abril, segundo consta, “em extrema miséria”